segunda-feira, 11 de junho de 2012

Pequeno projeto de uma cidade futura (Conto de Ricardo Piglia)

 
 
 
Pequeno projeto de uma cidade futura*
Ricardo Piglia

Título original: Pequeño proyecto de una ciudad futura

* Publicado en El final del eclipse. El arte de América Latina en la transición al siglo XXI, José Jimenes (comp.)
Madrid: Edición Fundación Telefónica, 2001.

Tradução de Eric Dantas. São Paulo, 2010.


Muitas vezes ouvi falar do homem que numa casa do bairro de Flores esconde uma réplica de uma cidade em que trabalha há anos. Construiu-a com materiais mínimos e numa escala tão reduzida que podemos vê-la de uma só vez, próxima e múltipla e como distante na suave claridade da alvorada.

A cidade está sempre distante e essa sensação de distância de tão próxima é inesquecível. É possível ver os edifícios, as praças e as avenidas e ainda o subúrbio que declina para o oeste até perder-se no campo.

Não é um mapa, nem uma maquete, é uma “máquina” sinóptica; toda a cidade está aí, concentrada em si mesma, reduzida à sua essência. A cidade é Buenos Aires mas modificada e alterada pela loucura e pela visão microscópica do construtor.

 
O homem diz que se chama Russel e é fotógrafo, ou ganha a vida como fotógrafo, tem seu laboratório na Rua Bacacay e fica meses sem sair de sua casa reconstruindo periodicamente os bairros do sul, que a cheia do rio arrasa e alaga toda vez que chega o outono.

Russel acredita que a cidade real depende de sua réplica e por isso está louco. Ou melhor, por isso não é um simples fotógrafo. Tem alterado as relações de representação, de modo que a cidade real é a que esconde em sua casa e a outra é apenas uma miragem ou uma recordação.
 

A planta segue o traçado da cidade geométrica imaginada por Juan de Garay com as ampliações e modificações que a história tem imposto à remota estrutura retangular. Entre os cânions que se veem do rio e os altos edifícios que formam uma muralha na fronteira norte persistem os rastros da velha Buenos Aires com seus tranquilos bairros arborizados e suas pastagens de pasto seco.

O homem tem imaginado uma cidade perdida na memória e a reproduz tal como a recorda. O real não é objeto da representação senão o espaço onde um mundo fantástico tem lugar.

A construção apenas pode ser vista por um espectador por vez. Essa atitude incompreensível para todos é, no entanto, clara para mim: o fotógrafo reproduz na contemplação da cidade, o ato de ler. Quem a contempla é um leitor e portanto deve estar sozinho. Essa aspiração à intimidade e ao isolamento explica o segredo que tem acompanhado seu projeto até hoje.

Sempre pensei que o plano oculto do fotógrafo de Flores era o diagrama de uma cidade futura. É fácil imaginar o fotógrafo iluminado pela luz vermelha de seu laboratório e que na noite vazia pensa que sua máquina sinóptica é um código secreto do destino; e o que ele altera em sua cidade logo se reproduz nos bairros e nas ruas de Buenos Aires, porém de modo ampliado e sinistro.

As modificações e os desgastes que sofre a replica os pequenos desmoronamentos e as chuvas que alagam os bairros se tornam reais em Buenos Aires sob a forma de breves catástrofes e de acidentes inexplicáveis.

O fotógrafo atua como um arqueólogo que desenterra restos de uma civilização esquecida. Não descobre ou fixa o real senão quando é um conjunto de ruínas (e nesse sentido, certamente, tem feito, de um modo evasivo e sutil, arte política). Está alinhado com esses inventores obstinados que mantém com vida o que tem deixado de existir. Sabemos que a denominação egípcia do escultor era precisamente “O-que-mantém-vivo”.

A cidade trata então sobre réplicas e representações, sobre a percepção solitária, sobre a presença do que tem se perdido. Em suma, trata sobre o modo de tornar visível o invisível e fixar as imagens nítidas que já não vemos mas que persistem ainda como fantasmas que vivem entre nós.

Esta obra privada e clandestina, construída pacientemente em um sótão de uma casa em Buenos Aires se vincula, em segredo, com certas tradições da arte no Rio da Prata; para o fotógrafo de Flores, como para Xul Solar ou para Torres García, a tensão entre objeto real e objeto imaginário não existe: tudo é real, tudo está aí e alguém se move entre os parques e as ruas, deslumbrado por uma presença sempre distante.

A minúscula cidade é como uma antiga moeda grega submersa no leito de um rio que brilha sob a última luz da tarde. Não representa nada, salvo o que tem se perdido. Está aí datada mas fora do tempo e possui o status da arte, se desgasta, não envelhece, foi feita como um objeto inútil que existe para si mesmo.

Tenho recordado nesses dias as páginas que Claude Lévi-Strauss escreveu em O pensamento selvagem sobre a obra de arte como modelo reduzido. A realidade trabalha a escala real, “tandis que l‘art travaille a l‘échelle réduite” (“enquanto a arte trabalha a escala reduzida”). A arte é uma forma sintética do universo, um microcosmo que reproduz a especificidade do mundo sem passar pela mimesis.  A moeda grega é um modelo em escala de toda uma economia e de toda uma civilização e ao mesmo tempo é apenas um objeto extraviado que brilha ao entardecer na transparência da água.

Há alguns dias decidi, finalmente, visitar o estúdio do fotógrafo de Flores. Era uma tarde clara de primavera e as magnólias começavam a florescer. Parei diante da alta porta envidraçada e toquei a campainha que soou ao longe, no fundo do corredor que se avistava do outro lado.

Em seguida, um homem magro e tranquilo, de olhos cinzentos e barba grisalha, vestido com um avental de couro, abriu a porta. Com extrema amabilidade e em voz baixa, quase em um sussurro onde se percebia o tom áspero de uma língua estrangeira, me saudou e me fez entrar.

A casa tinha um saguão que dava para um pátio e no final do pátio estava o estúdio. Era um amplo galpão com um teto em dois planos e em seu interior se amontoavam mesas, mapas, máquinas e estranhas ferramentas de metal e de vidro. Fotografias da cidade e desenhos de formas incertas enfeitavam as paredes. Russell acendeu as luzes e me pediu para sentar. Em seus olhos de sobrancelhas espessas ardia um brilho malicioso. Ele sorriu por um instante, eu então joguei em suas mãos a velha moeda que havia trazido comigo.

Olhou-a de perto com atenção e logo afastou-a de sua vista e moveu a mão para sentir o peso leve do metal.

Um dracma  disse. Para os gregos era um objeto ao mesmo tempo trivial e mágico... A ousía, a palavra que designava o ser, a substância, significava igualmente a riqueza, o dinheiro. Fez uma pausa . Uma moeda era um pequeno oráculo privado e nas encruzilhadas da vida era jogada para cima para saber o que decidir. Lançou-a ao ar e pegou-a e cobriu-a com a palma da mão. Observou-a. O destino está na esfinge de uma moeda disse. Tudo vai dar certo. Levantou-se e marcou um lado. O plano de uma cidade se destacava entre os desenhos e as máquinas. Um mapa, disse, é uma sinopse da realidade, um espelho que nos guia na confusão da vida. É preciso saber ler as entrelinhas para encontrar o caminho. Fixe-se. Se alguém estuda o mapa do lugar onde vive, primeiro deve encontrar o lugar onde está ao olhar o mapa. Aqui, por exemplo, disse , está minha casa. Esta é a Rua Puán, esta é a Avenida Rivadavia. Você agora está aqui. Fez uma cruz. Este é você sorriu . Há representações que se unem com as coisas das quais são marcadas por uma relação visível. Mas nessa visibilidade fazem desvanecer o original. Quando se olha um objeto como se fosse a imagem de outro se produz o que eu decidi chamar de a troca sinóptica. Assim é a realidade. Vivemos em um mundo de mapas e de réplicas.

Essa era disse a ideia que animava os assassinos em série, matar réplicas, série de réplicas que se repetem e que é preciso eliminar, uma depois da outra, porque voltam a aparecer inesperadas, perfeitas, em uma rua escura, no centro de uma praça abandonada, como miragens noturnas. Por exemplo, Jack, o Estripador buscava descobrir no interior das vítimas o elemento mecânico da construção. Essas inglesas, belas e frágeis, eram bonecas mecânicas, réplicas.
 
 

Ele, por outro lado, diferente de Jack, o Estripador queria deixar de lado os seres humanos e apenas construir reproduções do espaço onde habitam as réplicas.

Falava cada vez mais rápido, em voz baixa, e eu só podia captar o sussurro de suas palavras que ressoavam como alucinações tranquilas.

A ideia de uma coisa que substitui outra coisa que é ela mesma e se substitui em seu duplo, nos atrai, e por isso criamos imagens. Mas enquanto o desdobramento representativo remete ao desdobramento de uma relação articulada sobre um relevo, a troca sinóptica o que eu chamo a troca sinóptica significa a supressão do relevo intermediário. A réplica é o objeto convertido na ideia pura do objeto ausente.

Depois disse que seu nome verdadeiro era um segredo no qual se fundamentava a cidade. Esse era o centro íntimo da construção.

A cruz do sul...  acrescentou, com um sorriso.

Houve um silêncio. Pela janela chegou até nós o canto distante de um pássaro.

Russel pareceu despertar e lembrou que eu havia trazido a moeda grega e que coloquei-a outra vez na palma aberta da mão.

Você que fez? Olhou-me com um gesto de cumplicidade. Se é falsa, então é perfeita disse, e em seguida estudou com a lupa as linhas sutis e as nervuras do metal.  Não é falsa, pode ver? Era possível ver leves marcas feitas com uma faca ou com uma pedra. Uma mulher, talvez, pelo perfil do traço. Veja bem disse , alguém neste ponto mordeu a moeda para provar que era legítima. Um camponês, talvez, ou um escravo.

Colocou a moeda sobre uma placa de vidro e observou-a sob a luz de uma lâmpada azul, depois instalou uma câmera antiga sobre um tripé e começou a fotografá-la. Mudou várias vezes a lente e o tempo de exposição para reproduzir com maior nitidez as imagens gravadas na moeda.

Enquanto trabalhava se esqueceu de mim.

Andei pela sala observando os desenhos, as máquinas e as galerias que se abriam ao lado, até que no fundo vi a escada que dava acesso ao sótão. Era circular e de ferro e subia até perder-se no alto. Subi tateando na penumbra, sem olhar para baixo. Apoiei-me no escuro corrimão e senti que os degraus eram irregulares e incertos.

Quando cheguei em cima a luz me cegou. O sótão era circular e o teto de vidro. Uma claridade nítida iluminava o lugar.

Vi uma porta e uma cama simples, vi Cristo na parede do fundo, e no centro do quarto, distante e próxima, vi a cidade e o que vi era mais real que a realidade, mais indefinido e mais verdadeiro.

A construção estava nesse lugar, como fora do tempo. Tinha um centro mas não tinha um fim. Em certas zonas nos arredores, quase na margem, começavam as ruínas. Nos confins, do outro lado, fluía o rio que levava ao delta e às ilhas. Em uma dessas ilhas, uma tarde, alguém havia imaginado uma ilhota suja de lama onde as marés colocavam periodicamente em marcha o mecanismo da recordação. Ao leste, perto das avenidas centrais, se edificava o hospital, com as paredes de azulejos brancos, onde uma mulher iria morrer. No oeste, próximo do Parque Rivadavia, se estendia, tranquilo, o bairro de Flores. Com seus jardins e suas paredes cristalizadas e ao fundo de uma rua com paralelepípedos desiguais, nítida na quietude do subúrbio, era possível ver a casa da Rua Bacacay e no alto, visível apenas na visibilidade extrema do mundo, a luz vermelha do laboratório do fotógrafo reluzindo na noite.

Estive nesse lugar durante um tempo que não posso recordar. Observei, como alucinado ou sonolento, o movimento imperceptível que pulsava na minúscula cidade. Por fim, olhei-a pela última vez. Era uma imagem remota e única que reproduzia a forma incerta e real de uma obsessão. Recordo que desci tateando pela escada circular rumo à escuridão da sala.

Russel, da mesa onde manipulava seus instrumentos, me viu entrar como se não me esperasse e logo, de um leve vacilo, se aproximou e colocou a mão no meu ombro.

Você viu? perguntou.

Concordei, sem falar.

Agora, então  disse pode ir e pode dizer o que viu.

Na penumbra do entardecer, Russel me acompanhou até o saguão que dava para a rua.

Quando abriu a porta, o ar suave da primavera veio dos sítios silenciosos e dos jasmins das casas vizinhas.

Tome disse, e me deu a moeda grega.

Isso foi tudo.

Caminhei pelas veredas arborizadas até chegar à Avenida Rivadavia e depois entrei no metrô e viajei distraído pelo rumor surdo do trem observando a imagem indecisa de meu rosto refletido no vidro da janela. Pouco a pouco a microscópica cidade circular se perfilou na penumbra do túnel com a fixidez e a intensidade de uma recordação inesquecível.

Então compreendi o que já sabia: o que podemos imaginar sempre existe, em outra escala, em outro tempo, nítido e distante, como num sonho.

Pós-escrito

Reproduzo o testemunho anterior tal como apareceu, em novembro de 2000, no catálogo da exposição O fim do milênio, sem outras alterações a não ser a supressão de algumas metáforas e de uma hipótese final que agora resulta desnecessária. Entre o começo da construção (que remonta segundo podemos suspeitar a 1970) e sua destruição há três meses, o prestígio e o conhecimento da cidade cresceu e se espalhou.

Russel sempre recusou que sua obra fosse divulgada e essa decisão converteu seu trabalho na mania de um inventor extravagante. E algo disso havia nele. Mas eu sei (e outros sabem) que esse trabalho insano, levado adiante durante décadas, é um exemplo da revolução que sustenta a arte desde sua origem.

Russel faz parte dessa linhagem de inventores obstinados, sonhadores de mundos impossíveis, filósofos secretos e conspiradores que se mantém distantes do dinheiro e da linguagem comum e que terminam por inventar sua própria economia e sua própria realidade. “Normalmente (escreveu Ossip Mandelstam) quando um homem tem algo a dizer vai atrás do povo, busca quem lhe dê ouvidos. Mas com o artista acontece o contrário. Ele escapa, se esconde, foge para a margem do rio onde a terra termina ou vai para o vasto rumor dos espaços vazios onde apenas a terra seca do deserto permite que ele se esconda. Seu andar não é por acaso evidentemente anormal? A suspeita de loucura sempre recai sobre o artista”.

Até o final Russel manteve vivo esse espírito de inventor de bairro e de amador: passava os dias em seu laboratório do bairro de Flores fazendo experiências com o futuro e com o rumor silencioso da cidade. Sua obra parecia a mensagem de um viajante que tem chegado a uma cidade perdida: que essa cidade seja a cidade onde todos vivemos e que essa sensação de estranheza tenha sido lograda com a maior simplicidade é outro exemplo da originalidade e do lirismo que caracterizaram seu trabalho.

O projeto foi visitado no estúdio do artista durante vinte anos individualmente por oitenta e sete pessoas, em sua maioria mulheres. Algumas têm deixado testemunhos gravados de sua visão e já há algum tempo esses relatos e essas descrições podem ser consultados no livro A cidade mínima, editado por Margo Ligetti, em março de 2001, com uma série de doze fotografias originais do artista.

Muitas obras argentinas são secretas homenagens a essa cidade secreta e reproduzem seu espírito sem nunca nomeá-la porque respeitam os desejos de anonimato e de simplicidade do homem que dedicou sua vida a essa infinita construção impossível.

A arte vive da memória e do futuro. Mas também do esquecimento e da destruição.

A cidade como sabemos pegou fogo em fevereiro deste ano e adquiriu imediata notoriedade porque apenas as catástrofes e os escândalos interessam aos donos da informação.

O fotógrafo morreu dois anos antes na obscuridade e na pobreza.

Da cidade agora sobrevivem apenas seus restos carbonizados, o esqueleto de alguns edifícios e várias casas do bairro sul que têm resistido em meio à destruição. A cineasta Luisa Marker filmou as ruínas e os últimos incêndios, e as imagens que vemos fazem pensar em um documentário que registra e percorre uma cidade que arde no meio de um eclipse nuclear.

Na penumbra avermelhada persiste a construção em ruínas, espectral, inundada pela água e semiafundada na lama. Certos indícios de vida têm começado a insinuar-se entre os restos carbonizados (casas onde as luzes ainda brilham, sombras vivas entre os escombros, música nas danceterias, e a sirene de uma fábrica abandonada que soa ao amanhecer). São parecidas com as imagens frenéticas de um noticiário sobre Buenos Aires no futuro remoto, e o que vemos é o brilho da catástrofe que todos esperamos e que certamente se aproxima
 
 
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