sexta-feira, 27 de julho de 2012

PLÁGIO? (por Alfredo Monte)

Leituras em espelho: MAX E OS FELINOS e VIDA DE PI

 


(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 24 de julho de 2012)

Há dez anos, uma controvérsia cercou a premiação de A vida de Pi (Life of Pi, 2001) com o Booker Prize, o mais prestigiado da língua inglesa: o livro de Yann Martel plagiara  Max e os felinos (1981), de Moacyr Scliar? Em ambos, o jovem sobrevivente (um alemão fugindo do nazismo rumo ao Brasil, em Scliar; um indiano, cuja família administrava um zoológico e que resolve emigrar para o Canadá, em Martel) de um naufrágio, protagonista do relato,  tinha de conviver num bote salva-vidas com um felino imponente (um jaguar, no autor brasileiro; um tigre-de-Bengala, no canadense).
  

Scliar procurou afastar a embaraçosa acusação de plágio e revelou-se melindrado mais porque Martel o citara entre as pessoas a quem agradecia numa nota (“a centelha de inspiração devo-a ao sr. Moacyr Scliar”), sem explicar o porquê e nem citar Max e os felinos (aliás, Martel, demostrando uma inabilidade campeã, para não dizer desagradável, afirmava nem ter lido o texto e apenas  conhecer seu enredo através de uma resenha negativa, considerando um desperdício ideia tão boa e tão mal aproveitada).



    Bem, passou-se uma década, Scliar faleceu em 2011 e mesmo sob suspeita, A vida de Pi ganhou não apenas uma, mas duas traduções brasileiras: a primeira pela Rocco, e uma recente, feita por Maria Helena Rouanet para a Nova Fronteira (embora, no geral, esta nova versão seja mais bem-acabada, prefiro várias soluções da anterior,  mais crua e objetiva, de Alda Porto, mas é questão de gosto). E podemos verificar com mais serenidade as duas questões principais levantadas pelo incidente: se há de fato plágio, e qual dos dois é mais interessante —ou  haveria uma equivalência de qualidade?

    Acho que, não obstante a deselegância de Martel ao se referir a Scliar e à maneira como aproveitou a “centelha de inspiração”, não há plágio algum porque a situação do náufrago no bote com um animal feroz não é o ponto central de Max e os felinos. Scliar narra a trajetória de vida de Max Schmidt, na qual vários representantes felinos desde a sua infância simbolizam e exteriorizam forças contra as quais ele tem de se haver (o autoritarismo do pai, o nazismo, a adaptação ao solo brasileiro). Trata-se de um texto correto e simpático, com essa boa sacada do jaguar a bordo, contudo sem grandes voos. De certa forma, sim, um desperdício (como tantos outros que Scliar cometeu em sua carreira).

Em compensação, A vida de Pi é  fora do comum. E é Martel quem aproveita integralmente as possibilidades que a convivência entre um ser humano e uma “fera” num espaço exíguo comporta.



   Para começar, ele criou uma voz narrativa irresistível, a de Pi Patel (seu apelido é uma alusão ao famoso número representado pela letra grega  ,do qual ele se apropriou para que não ridicularizassem seu nome) e, a partir dela, construiu um romance filosófico poderoso. Recordando sua existência e suas pesquisas espirituais (queria ser ao mesmo tempo devoto do hinduísmo, cristão e muçulmano) e, após o naufrágio,  convivendo com Richard Parker (o nome dado ao tigre), ele faz o leitor enfrentar pesadas questões teológicas, as quais, em última instância, colocam em xeque a existência de uma Providência Divina, a questão da indiferença da natureza ao nosso destino individual, a irredutível diferença dos animais com relação a nós, que tentamos tanto antropomorfizá-los, torná-los parecidos conosco, e a questão-limite da sobrevivência: como ficam nossos valores éticos e nossas regras e rituais diante do bruto fato de que temos de viver dia a dia. Estamos longe, aqui, das águas rasas de Max e os felinos.

   Pi alega ter convivido “duzentos e vinte e sete dias” com Richard Parker (há episódios que nos remetem aos romances juvenis de aventura, a Robinson Crusoé, que “recheiam”, é claro, esses dias narrados com minúcia e uma beleza atordoante, como a caracterização do “tráfego” sob a água: “Eu contemplava aquele tumulto urbano como alguém observando uma cidade de um balão de ar quente. Era um espetáculo maravilhoso, que inspirava reverente admiração. Com certeza é o que deve parecer Tóquio na hora do rush” ).

    Colocado contra a parede por profissionais que apuram  o naufrágio, ele acaba narrando uma outra versão, mais realista, mais sórdida, talvez mais terrível porque envolve o território humano tão somente.
   Mas A vida de Pi não se reduz a uma alegoria, em que os animais representam determinadas atitudes e qualidades, num disfarce habilidoso. A originalidade desse romance extraordinário é conseguir que acreditemos inteiramente na versão que Pi construiu para si, para sobreviver (no sentido psíquico) à sua experiência-limite, de tal maneira ela é eficaz em todos os seus componente narrativos. Talvez porque seja mais saudável acreditar em fábulas. Com elas pelo menos aprendemos algo.



ANEXO- Cenas de Naufrágio:
“Uma noite Max acordou com a sensação de que algo anormal ocorria a bordo. Os animais estavam mais agitados do que de costume. Sentou na cama. Sim, alguma coisa estranha estava acontecendo: ouvia o ruído de passos apressados, um confuso vozerio. Vestiu-se rapidamente, saiu—e neste momento as luzes se apagaram. Na semi-obscuridade via vultos correndo de um lado para outro. O que está acontecendo? –perguntou, mas ninguém lhe respondia. Dirigiu-se para o convés—e só então notou que o navio estava adernado, e que continuava adernando rapidamente (…) o navio estava afundando. Os barcos  desciam rapidamente, e logo não havia mais ninguém a bordo. Assustado, Max correu para a amurada:
__ Não me deixem aqui.
   Inútil: os barcos s afastavam rapidamente. Ah, traidores, berrou Max. De repente percebia tudo. O Germania jamais deveria chegar a seu destino, aquele naufrágio estava planejado desde o início (…) Canalhas, rosnou Max—mas agora não podia perder tempo, o Germania afundaria em minutos. Correu à popa e ali—milagre—encontrou um pequeno escaler (…)
    Ao clarear do dia viu-se sozinho na vastidão do oceano. Enorme angústia apossou-se dele; pôs-se a chorar desabaladamente. Que triste situação. Que triste vida. Infância não de todo feliz; adolescência atormentada; fuga precipitada da pátria e agora isso, o naufrágio! Era demais. Chorava, sim, chorava e se maldizia também: por que tivera de se meter com uma mulher casada? Com um esquerdista maluco? Não sabia ele que na certa as coisas terminariam mal? (…)
   Teve então uma ideia: improvisar uma espécie de cabana com os destroços do Germania que flutuavam a seu redor. Uma grande caixa de madeira, boiando a pequena distância, parecia  adequada para isto. Com muito esforço, remou até lá.
   Puxou a caixa para junto do barco. Examinou-a e constatou que tinha, na parte superior, uma tampa fechada por um cadeado que agora, quebrado, pendia frouxo. Max retirou-o.
   Alguma coisa pulou de dentro da caixa, arremessando-o com força inaudita contra o chão do escaler. Max bateu com a cabeça, perdeu os sentidos.
   Aos poucos foi se recuperando. Abriu os olhos.
    O berro que soltou atroou os ares. Diante dele, sentado sobre o banco do escaler, estava um jaguar.” (MAX E OS FELINOS)[1]



“O navio afundou. Fez um som que parecia um monstruoso arroto metálico. As coisas ficaram borbulhando na água e, depois, desapareceram. Tudo gritava: o mar, o vento, o meu coração. Do bote salva-vidas, vi algo na água.
–Richard Parker, é você?—gritei.—Está tão difícil enxergar. Ah, se essa chuva parasse… Richard Parker? Richard Parker? É você mesmo!
   Só dava para ver a cabeça dele, que lutava para se manter na superfície.
__ Jesus, Maria, Maomé e Vishnu, que bom ver voc~e, Richard Parker! Não desista, por favor. Venha para o bote. Está ouvindo esse apito? Triiiiii! Triiiiii! Triiiiii! É isso mesmo. Nade, nade! Você é um ótimo nadador. Não são nem trinta metros.
   Ele tinha me visto. Parecia em pânico. Começou a nadar na minha direção. Ao meu redor, a água se movia furiosamente. Ali, ele parecia pequeno e indefeso.
__ Dá para acreditar no que nos aconteceu, Richard Parker? Diga que é um pesadelo. Diga que não é verdade. Diga que ainda estou na minha cabine no Tsimtsum, me virando e me debatendo, e que logo vou acordar desse pesadelo. Diga que continuo a ser feliz (…) Que Vishnu me preserve, que Allah me proteja, que Cristo me salve, não aguento isso! (…) Todas as coisas de que eu gostava na vida foram destruídas. E não mereço uma explicação? Vou ter de sofrer o diabo sem que o céu me dê qualquer justificativa? Nesse caso, de que serve a razão, Richard Parker? Ela só vale para brilhar com relação a coisas práticas: conseguir comida, roupas e um abrigo? Por que a razão não é capaz de dar respostas maiores? Por que não podemos lançar uma pergunta mais longe do que podemos alcançar uma resposta? Por que uma rede tão grande se há tão pouco peixe para pescar?” (VIDA DE PI)[2]


[1] Note-se que Scliar tem o cuidado de fazer com que Max bata a cabeça e desmaie antes de constatar a presença do jaguar no escaler, pois sempre se pode atribuir todos os episódios seguintes a uma alucinação.
[2] Assim está na tradução de Maria Helena Rouanet.A título de curiosidade, veja-se como o trecho final ficou na versão de Alda Porto:
“…Cada pequena coisa que eu valorizava na vida foi destruída. E não me dão explicação alguma? Vou sofrer o diabo sem nenhuma explicação do céu?Nesse caso, qual o propósito da razão, Richard Parker? Não é mais que brilhar nas coisas práticas da vida…a obtenção de comida, roupa e abrigo? Por que a razão não sabe dar as grandes respostas? Por que podemos lançar uma pergunta muito mais longe do que podemos receber uma resposta? Por que uma rede tão imensa, se há tão pouco peixe para pegar?”



Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...