quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O QUINTAL DOS PÁSSAROS (Pedro Salgueiro para O Povo)



Sou apaixonado por pássaros desde a infância.

Como fui criado em quintais enormes, misturado com uma infinidade de irmãos, primos e amigos, livres e inventando todo tipo de brincadeira, caçar passarinho era uma das mais cotadas; certa espécie de ritual de passagem a uma idade menos inocente. Procurávamos forquilhas as mais perfeitas possíveis, botávamos para secar o cabo de marmeleiro que não rachava e era bem lisinho, descascávamos com paciência e depois bastava encontrar pedaços de câmara de ar de bicicleta para compormos nossas baladeiras. Minto, ainda faltava as “fundas”, pequenos pedaços de couro onde se colocavam as pedras, facilmente encontradas na oficina de meu pai sapateiro. Distribuía os pedacinhos de vaqueta entre os amigos, que em troca me davam as tiras de borracha.


Logo na minha primeira caçada vi que não levava jeito, ou melhor, que não tinha coragem de matar os galos-campina, rolinhas e bem-te-vis. Gostava demais dos bichinhos, tinha o coração mole. Mas como também tinha vergonha de admitir para os outros minha “fraqueza”, errava de propósito todos os tiros. Enganei o quanto pude, até que deixei de lado as caçadas, cuja “arte” requeria, além da paciência e destreza, uma dose grande de sangue-frio que beira a crueldade.

Outro marco de minha relação com os passarinhos foi quando ganhei de presente um corrupião cor de fogo lindo que cantava o dia inteiro. Recebi até proposta de compra feita pelo pessoal do Projeto Rondon que, à época, desenvolvia trabalhos de assistência pelo interior. Recusei a oferta deles e de outros amigos, para anos depois ver minha mãe, numa operação desastrosa, deixar meu xodó fugir da gaiola. A imagem do Corrupião voando desajeitado pela falta de prática para um parapeito de janela, depois para um ganho de mulungu, antes de desaparecer por cima da casa de meus primos, foi uma das imagens mais doloridas de minha infância e um verdadeiro ritual de iniciação em matéria de sofrimento. Tempos depois, já adolescente, fui perdendo a admiração pelo querido passarim, ao descobrir que ele tinha por hábito expulsar outras aves e se apossar impiedosamente, inclusive jogando os filhotes alheios árvore abaixo, de seus ninhos. Com esse acidente desisti de criar passarinhos presos e ganhei a mania de colecionar gaiolas com as portinholas escancaradas.



Hoje uso grande parte de meu tempo observando pássaros em meu minúsculo quintal: um bem-te-vi que “rouba” a ração do cachorro toda 9h e 15h e que protesta estridentemente se esquecemos de trocar a comida e a água compartilhadas por ele e o pequeno cão, uma rolinha que fez ninho no galho do pé de graviola e usa minhas janelas para conversar com as outras, um golinha-estrela que saltita incansável no último galho da goiabeira, além das revoadas de periquitos que, vindos dos lados do Parreão e seguindo na direção do Parque Araxá, descansam tagarelando na capa da mangueira da casa ao lado, antes de seguirem viagem. À noite as muitas corujinhas brincam de voar entre o meu telhado e o de um prédio próximo, às vezes desviam para o outro lado da rua, invadindo corajosamente o domínio dos morcegos no sapoti de um médico vizinho, cujos filhos passam as tardes se “divertindo” com espingardas de pressão alvejando os quirópteros.

Por último baixei decreto lá em casa (reunindo adultos e crianças) dando total posse de todos os frutos do pomar, mangas, acerolas, goiabas, graviolas, assim como a totalidade dos galhos, janelas e telhados aos muitos voadores que habitam ou passam pelo nosso arborizado bairro; ficando também terminantemente proibido jogar pedras, botar som alto, assim como despertadores e calmantes em toda a extensão do meu pequeno território, que a partir da data de assinatura passou a se chamar Quintal dos Pássaros.



*(1) O cineasta Alfred Hitchcock tinha cruel fascínio por pássaros, além do belo Os Pássaros, aonde a personagem Melanie (Tippi Hedren) vai ao encontro do possível namorado Mitch (Rod Taylor) numa pequena cidade da Califórnia e encontra os terríveis pássaros, no clássico Psicose o misterioso assassino Norman Bates (Anthony Perkins) coleciona aves empaladas e até as paredes do sombrio casarão são repletas de fotografias de aves; também quando Norman recebe a bisbilhoteira visita do detetive Arbogast (Martin Balsan) está folheando um livro sobre pássaros.

*(2) Um dos mais fascinantes contos que já li se chama Os pássaros, do polonês Bruno Schulz (de seu monumental livro Lojas de Canela), quando o pai do personagem narrador se refugia, em sua caduquice, num sótão repleto de aves exóticas. Quando, um dia, a decidida empregada Adele põe fim àquele mundo de confusões e sonhos: espanta todas as aves a vassouradas.

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