terça-feira, 4 de setembro de 2012

UM ABISMO ENTRE VERDADE E AFETAÇÃO ARTÍSTICA (por Chico Lopes)

A atriz Kim Novak, cuja carreira, já nos anos 1960, havia sucumbido à chegada de novas estrelas, mais “naturais” que as dos anos anteriores, não teve grande brilho em sua trajetória no cinema (hoje é uma idosa reclusa, casada com um veterinário, há muito tempo sem filmar). Foi em geral considerada, apesar de bela, uma atriz fraca, muito fria e alheia em seus papéis. Mas conheceu um triunfo (e não é dos pequenos) – foi a mulher dupla, Madeleine Elster/Judy Barton, em “Um corpo que cai”, a obra-prima suprema de Alfred Hitchcock.

O filme agora chegou aonde merecia estar há muito tempo: no topo da lista dos críticos da revista “Sight and Sound”, derrubando “Cidadão Kane” para o segundo lugar, e Kim, a despeito de suas fraquezas, pode se orgulhar de ter alcançado o que poucas atrizes ou estrelas mais talentosas que ela conseguiram.

O que é curioso, nessa história, é que Alfred Hitchcock usou as desvantagens de atriz de Kim em favor de seu personagem: a frieza e o alheamento dela foram perfeitos para a composição de Madeleine Elster/Judy Barton. Sob a direção de Hitchcock, alguma coisa deve ter sido tocada profundamente em Kim, porque, na segunda parte do filme, ela consegue, como em nenhum outro, demonstrar uma emotividade e uma aflição convincentes. Prejudicada (em parte) pela maquilagem excessiva que lhe impuseram ao se transformar na morena Judy, Kim conseguiu impor sua presença no filme, a ponto de ter se tornado o símbolo da mulher inesquecível e mítica que todo homem gostaria de amar (e ama, aliás, em potência, sem conseguir aproximar mito e realidade). Tem a entrada em cena mais impressionante que uma estrela já teve em um filme, quando o detetive vivido por James Stewart vai vê-la, sob sugestão do “amigo” Galvin Elster, no restaurante Ernie's. No momento em que passa por Stewart aparentemente sem notá-lo, ganha um close de perfil, tendo ao fundo a música romântica extraordinária de Bernard Hermann, que é de uma beleza espantosa. É uma cena feita por imagem e som, não mais. Não espanta que, na cena seguinte, Stewart já tenha aceitado a missão de que lhe incumbiu Elster e saia pelas ruas de San Francisco, perseguindo-a obsessivamente. Qualquer espectador faria o mesmo.

Bem, Kim Novak, recentemente, diante do sucesso fora do comum do filme “O artista”, o ganhador do último Oscar, protestou em Hollywood. “O artista”, numa cena dramática lá pelo seu final, usa um longo trecho da trilha sonora de Hermann para “Um corpo que cai” de maneira bem oportunista. As pessoas vêem essas coisas hoje em dia, numa época de muita leniência e deslumbramento, sem dar muita bola. Mas Kim decidiu fazer a coisa certa: achou que a apropriação era uma violação e chiou.


De fato, “O artista” é bem um exemplo de uma era de mediocridade no cinema. É um filme charmoso, bonitinho, que, se não houvesse sido feito em preto e branco, mudo, com apelo certo para os valores da velha Hollywood (mas com um evidente e calculista conformismo acadêmico), se fosse falado, a cores etc, seria de uma banalidade espantosa. Tem tudo pra ser gostado: um galã que evoca Douglas Fairbanks, Ramon Navarro e Valentino e outros célebres astros do mudo, uma garota simpática (dando uma de Debbie Reynolds), um cachorrinho engraçadinho e adorável, mistura coisas dos roteiros de “Cantando na chuva”, “Nasce uma estrela”, “Luzes da ribalta” e  talvez outros filmes, com competência, e serve o prato direitinho, “boy meets girl”, aquela história de sempre que Hollywood adora nos impingir: no mundo mágico da velha “silver screen”, havia encantamento, inocência, romance, graça patati patatá. Difícil que no ano que vem esse filme seja lembrado. É maneirista. Presta homenagem ao cinema de maneira superficial, para seduzir parte da crítica e o público, mas jamais exige ou reflete sobre nada profundo e discordante. Difere de “Um corpo que cai” como a verdade difere (e quanto!) da afetação artística.

“Um corpo que cai” foi um fracasso de público por causa da falta de “happy end” e não deu indicação ao Oscar a Hitchcock, embora merecesse mais que qualquer outro filme de 1958. É um filme corajoso em seu pessimismo, e suas reviravoltas deixaram o público pasmo, na sua época. Com muito pouca exposição e nenhuma vulgaridade, é profunda e visceralmente erótico. Traz James Stewart como um quarentão, aparentando já o cansaço e a velhice de uma vida de galã. E, embora com muito tato, não consegue encobrir o fato de que Judy Barton era quase uma prostituta cuja tragédia foi se apaixonar verdadeiramente pelo homem que enganou por dinheiro e jóias. O filme é essencialmente trágico, não foi feito para adular burrinhos otimistas que querem sair do cinema tal como entraram: sem perder nenhum de seus falsos valores e ideologias rasas. Também tem uma lentidão meditativa que o impede de ser apreciado pelas gerações da adrenalina forçada.

Kim Novak, admirável por esse filme, que a consagrou em meio a uma carreira cheia de filmes hoje esquecidos (exceto “Um corpo que cai”, pode ser lembrada por estar linda em “Pic-Nic”,  de Joshua Logan ), protesta e faz pensar. Tomara que seu protesto tenha feito muita gente ver como “O artista” é apenas charme e maneirismo, e com o descaramento de usar uma trilha sonora que destoa violentamente de sua atmosfera de frivolidade.
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Chico Lopes é pintor, escritor e crítico de cinema.

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