quarta-feira, 26 de setembro de 2012

DOM AIRTON DAS PERNAS FINAS (Pedro Salgueiro para O Povo)


(Airton Monte posando para a revista Para Mamíferos)

Nosso cronista Airton Monte tem sido tratado com bastante reverência, seriedade e pompa, advindas, claro, de sua cruel doença e lamentável morte. Aliás, como toda morte deve ser, sim, tratada. Mas me pego imaginando ele presente em seu velório, solenidade de cremação, missa de Sétimo Dia, escondido por trás de todos, rindo de toda aquela solenidade, com o traquino riso fácil que era muito dele: do escárnio de quem ria de tudo, de quem “gozava” do mundo, de quem “mangava” de todos.

Não, eu não fui seu amigo íntimo, nem seu camarada-irmão, muito menos tomei homéricos porres com ele em seus idos tempos de Estoril, também jamais passeei em sua companhia pela velha Iracema de todas as saudades. Sou de uma geração posterior. Quando comecei a rabiscar minhas primeiras letras, fazia muito ele tinha deixado de escrever contos. Acabara de assumir a página diária d’O POVO que havia sido de seu grande amigo Rogaciano Leite Filho. De lá pra cá, o tenho lido quase que diariamente, a ponto de sentir saudades quando ele tirava férias: pegava-me automaticamente indo à sua página toda manhã.


Estive com ele umas duas vezes em mesas de bares (na praia de Iracema e no Assis da Gentilândia, ambas com diversos amigos), outra na casa de Nilto Maciel com uma multidão de jovens escritores, umas duas (e rapidamente) no Clube do Bode. Em todas ele falou o tempo inteiro, não dando tréguas nem deixando ninguém abrir a boca. Mas, ironicamente, a maioria das vezes em que estive ao seu lado foi em mesas de palestras nos colégios de Fortaleza. Nossos livros haviam sido indicados para o vestibular da UFC e percorremos (algumas vezes individualmente, outras em conjunto) literalmente todos os colégios da cidade — eu adorava quando dividia mesa com ele, pois sabia que não teria, matuto encabulado que sou, que dizer quase nada: ele falaria sem dificuldades as duas horas, brincaria com os estudantes, contaria piadas e riria das falas sem jeito dos estudantes. Ria também de si, invariavelmente sobre seus “dentes” novos, móveis, que o maltratavam na prótese provisória que antecederia ao implante.

Um dia recebemos convite para ir a Sobral. Ele me ligou cedo querendo saber se eu ia mesmo, eu disse que sim, e combinamos de o carro do colégio passar primeiro na casa dele (salientou rindo que ele tinha prioridade por ser mais importante e mais velho). Durante a viagem conversou o tempo inteiro e insistiu diversas vezes para o motorista parar para que tomássemos cervejas e ele fumasse alguns cigarros. Fizemos (na verdade ele fez) a obrigação do bate-papo e depois seguimos com alguns professores para um bar. Enchemos a cara e (como boêmios aposentados) fomos para o hotel tristemente sozinhos. Lá, antes de dormir, ainda conversamos muito. Ele contou de uma viagem ao Rio de Janeiro, ria muito contando as peripécias cariocas. Durante a madrugada, de vez em quando se esgueirava na penumbra para ir fumar na varanda.


Gostava de tirar “onda” com os amigos nas páginas de suas crônicas: certa vez inventou que havia comido uma panelada comigo e Nilto Maciel (que ele chamava carinhosamente de “bigode”), outra me acusava de ter feito alguma traquinagem com ele, a última foi a de que eu tinha criado uma página pirata (que os jovens chamam de fake) dele no Facebook. Era uma de suas formas de carinho com os amigos e colegas de literatura. Certa vez se irritou com uma crônica, “O Vira-Casaca”, que fiz sobre ele, respondeu com outra: “Ora, pílulas!” ou “Ora, bolas!”, não lembro bem. Gostava de cutucar, mas detestava ser cutucado. Pouco depois nos encontramos e de longe ele já foi gritando: “Pedro Sangreiro”, um apelido que ele e Virgílio Maia me botaram devido às muitas mortes em meus contos.

Foi um homem de sorte: amou os pais e irmãos, casou-se com o amor de sua vida, sua prima Sônia, uma verdadeira santa (usando as palavras dele), teve filhos ótimos, colecionou uma legião de amigos fieis que o acompanharam até seus últimos instantes.

Deixou para a literatura cearense quatro livros de contos de qualidade (Alba Sanguínea, O Grande Pânico, Homem não Chora e Os Bailarinos), um volume de crônicas (Moça com Flor na Boca), outro de poesia (Conversa de Botequim), além de uma infinidade de crônicas nas páginas de O POVO. Creio (e torço) que tenha deixado inéditos, contos inacabados, rabiscos de crônicas e um romance sobre sua geração, que ele anunciava em conversas de bar.



Deixou sua importante contribuição na boa tradição da crônica cearense, tradição que já nos deu nomes como José de Alencar, Gustavo Barroso, Caio Cid, Raquel de Queiroz, Herman Lima, Otacílio de Azevedo, João Jacques, Otacílo Colares, Milton Dias, Ciro Colares, Moreira Campos, Margarida Sabóia de Carvalho, dentre outros.

Deixou também sua contribuição como figura humana singular, cheia de contradições e idiossincrasias: craque míope, estudante competente, psiquiatra irreverente, boêmio inveterado, torcedor “doente” do Fortaleza e do Botafogo, bom amigo, leitor voraz e o maior ladrão de livros que já existiu por estas plagas (título que dividia orgulhosamente com seu irmão Vessilo).

Deixou saudades!!!!!

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