segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

70 ANOS DE MARIA VALÉRIA REZENDE (por Alfredo Monte)

A VERDADEIRA SENHORA DO DESTINO: o mundo cada vez mais vasto de Maria Valéria Rezende

val
A Valentina, que sem saber me deu um presente tanto para o leitor quanto para o homem, em termos de literatura, amizade e aprendizado de vida. Aqui vai meu agradecimento tardio.
Já contei essa história algumas vezes, mas nunca por escrito:
Um dia, em 2001, encontrei na minha caixa de correio, o exemplar de um livro. Nunca ouvira falar da autora ou da editora. Uma carta o acompanhava:
Prezado Senhor,
   Tomei a liberdade de pedir seu endereço para a ***********[o nome da pessoa não vem ao caso].
   Maria Valéria Rezende é minha irmã.  Sua história de vida, um tanto quanto movimentada e rica, aliada a sua sensibilidade, fez dela uma escritora, conforme atesta Frei Betto no prefácio de “Vasto Mundo”.
   É com muito orgulho que me envolvo pessoalmente no lançamento de seu primeiro livro de ficção.
Etc etc. Fiquei muito bravo. Que folga! Que petulância! Imediatamente liguei para A TRIBUNA solicitando encarecidamente que não fornecessem mais meu endereço em situações similares, em hipótese alguma. Já pensou? Devia de ser uma senhorinha, como tantas as há, que transitam entre a coluna social e o exercício do beletrismo (o nome todo indicava isso: Maria Valéria Vasconcelos Rezende). Como moro na Baixada Santista, sempre fugi de um certo tipo de lançamento bem provinciano, sempre evitei fazer resenhas que só serviriam para vivificar a fogueira das vaidades locais.

Verificando o volume com mais atenção,pensei: não me faltava mais nada: uma freira, de uma tal Congregação  de Nossa Senhora-Cônegas de Santo Agostinho. Danou-se! Provavelmente eram histórias edificantes e piegas.
Então, caí vítima da dengue. E foi bravo. Fiquei umas duas semanas em estado de prostração, e nem tenho a certeza de ter me recuperado totalmente (acho que conheci o que era a depressão, no sentido orgânico). Fui me recuperar na casa dos meus pais, que depois, como sempre  faziam (e ainda fazem), viajaram para o sítio, me deixando ali. Até hoje não sei bem o porquê de ter levado o exemplar de Vasto Mundo comigo. Deve ter sido uma ação sorrateira do destino. Só sei, que após duas semanas sem a menor vontade de ler, devido aos enjoos e ao mal-estar geral, o livro que me fisgou, ao contrário dos outros que havia levado, foi o de Maria Valéria Rezende.
VASTO_MUNDO_1259983066P
Afora seus indiscutíveis méritos literários, o talento pronto e acabado da autora, nada titubeante ou inseguro, sua capacidade de envolver o leitor com suas histórias, a coletânea (ou romance?,pois —na trilha de Winesburg, Ohio, de Sherwood Anderson, Vidas Secas, de Graciliano,  O povoado, de Faulkner— poderíamos até avaliá-la nessa categoria) me fascinou porque, à época,  estava mergulhado no mundo de Duas Pontes, a mítica cidade criada por Autran Dourado, por conta da minha tese de doutorado. Como resultado das minhas leituras e encafifações, duas características muito relevantes e evidentes em Vasto Mundo me obcecavam: o uso do discurso indireto livre e a relação entre uma narrativa específica de um determinado autor com uma macro-narrativa. No mundo parabaiano-cósmico de Farinhada delineado por Maria Valéria, cada texto era uma peça autônoma, mas tanbém se juntando ao quebra-cabeças do conjunto ganhava em perspectiva e densidade. Valia para os dezesseis relatos ali reunidos a afirmação tão bela de Faulkner sobre a criação de Yoknapatawpha (imagine-se a minha empolgação quando descobri, muito mais tarde, que esse território literário fascinava a autora estreante tanto quanto a mim):
“Substituindo a realidade pelo apócrifo teria eu possibilidade de utilizar ao máximo o talento existente. Essa descoberta abriu uma mina de ouro em forma de pessoas e assim criei um cosmos próprio. Posso movimentar essa gente como se fosse Deus, não apenas no espaço como também no tempo… Gosto de pensar que o mundo que criei é uma pedra fundamental no universo, a qual, embora pequena, causaria o seu colapso se fosse removida.”
Não sei bem por que, também, do saldo da primeira leitura de Vasto Mundo fiquei com a ideia, ou melhor, com o “pensamento mágico”, de que Farinhada era a seara de Maria Valéria Rezende e que ela iria explorar continuamente esse universo, como Faulkner fizera com Yoknapatawpha, Autran Dourado com Duas Pontes, Onetti com Santa María… Talvez porque Farinhada, seus habitantes e suas histórias se imprimiram tão fortemente na minha cabeça, como mais tarde a Papaconha de Pedro Salgueiro, em outro livro maravilhoso, a transitar entre conto e romance: Inimigos (2007).
Devo acrescentar que, mesmo havendo futuras edições de Vasto Mundo, sempre terei apreço pela edição da Beca. Creio que foi o seu capricho, mais do que os encômios de Frei Betto, que me levou à leitura efetiva do livro.
De qualquer forma, interessados em saber a minha reação inicial ao livro, podem acessar: http://armonte.wordpress.com/2012/12/06/por-detras-das-palavras-desencontradas-a-estreia-memoravel-de-maria-valeria-rezende/. Só fiz ligeiras e insubstanciais mudanças no texto originalmente publicado em A TRIBUNA, em maio de 2001.
a releitura de vasto mundo para neoleitores
Fiquei, então, alguns anos sem saber nada de Maria Valéria (a quem não cheguei a encontrar pessoalmente em 2001), mas esperando que alguma hora aparecesse mais de Farinhada e sua macro-narrativa.
Saltando para 2005: recebi notícias de que a Objetiva lançaria um romance dela, e recebi em casa (agora sem escândalo ou chilique) um exemplar de O voo da guará vermelha. É claro que, como sou muito chato, tinha que implicar com alguma coisa. Dessa vez, com o título, que me parecia folclórico e perigoso. E é lógico que caí do cavalo, pois a leitura do primeiro capítulo já me fez perceber que todas as qualidades que apreciara no primeiro livro, ali estavam agudizadas e ampliadas: a frase lapidar, o ritmo perfeito, sem contar a técnica de encaixes narrativos que permitia que a história se desse em vários planos, literária e pedagogicamente criativos. Explico-me novamente: contra certas concepções pós-modernas, creio que há uma função pedagógica para a literatura, e ptocuro uma autoridade moral nos autores; enfim, não tem jeito,  sou um anacrônico. Quero crer que a humanidade aprende com a experiência, quero crer que haja uma função, ainda que imponderável, para o ato de escrever, de contar histórias, e para o ato de ler, de compartilhar histórias. Creio que para o leitor que persegue esse objetivo, mesmo que inconscientemente, O voo da guará vermelha é uma das grandes leituras que a arte do romance reservou para o leitor do século XXI.
Relendo-o agora, em 2012, mais uma vez me emocionou profundamente a compaixão entre os personagens, não no sentido de uma comiseração mútua, mas daquele envolvimento e engajamento solidário entre as pessoas para além  da degradação que a realidade e o cotidiano brutalizado podem oferecer. Maria Valéria Rezende renega totalmente aquele dito de Eugene O´Neill de que  “a vida é, para cada homem, uma cela cujas paredes são espelhos”.
Todavia, o mais bonito das minhas releituras atuais, tanto de Vasto Mundo quanto de O voo da guará vermelha, além de confirmar que eles só ganharam com  a passagem do tempo, e se mostraram mais densos e belos do que na leitura inicial, foi que —conhecendo pessoalmente Maria Valéria, como agora conheço— pude como que ouvir a sua voz narrando seus próprios livros, pois ela é uma contadora de histórias da própria vida digna de uma Sherazade. Já disse que ela entreteria qualquer sultão por mil e uma noites, e repito, porque o que não falta na sua vida é aventura e anedota, lugares, pessoas, línguas e experiências. Ela é a encarnação do narrador-viajante (em oposição ao sedentário), o narrador-marinheiro (em oposição ao narrador-camponês), caracterizado por Walter Benjamin. Esse foi outro ganho para a minha vida, eu que sou, por constituição psíquica, camponês-sedentário.
Então, reler esses livros ao “som” (mental) da fala de Maria Valéria foi uma prova da força da sua presença na minha vida.
voo
Antes de passar para a próxima etapa, aconselho aos que queiram saber mais sobre O voo da guará vermelha a acessar: http://armonte.wordpress.com/2012/12/04/a-linguagem-contra-o-esquecimento-do-ser-num-dos-grandes-romances-brasileiros/. Também só fiz alterações leves no texto original, de 2005.
Diga-se de passagem, a essa altura já achava natural, no comentário a outros autores, fazer comparações e aproximações com as narrativas de Maria Valéria. Um exemplo, tirado de uma resenha que escrevi sobre O morto certo, de Jorge Semprún:
“Esse morto do qual se necessita é, além de representante dos “dispensáveis” num modo de pensar em que só os fins contam, também representante dos “desamparados”, daqueles que desistem de viver na situação-limite, aqueles cujo olhar já abandonou o corpo e que não conseguem sustentar uma atitude positiva similar à do narrador: Assim, mesmo sentado sobre a viga das latrinas do Pequeno Campo; ou acordado no tumulto dos gemidos do dormitório; ou alinhado na fileira de detentos diante de um soboficial da SS fazendo a chamada; ou esperando que o serviço de alojamento cortasse com o fio de aço o derrisório pedaço de margarina cotidiana; em qualquer circunstância era possível se abstrair do imediatismo hostil do mundo para se isolar na música de um poema.
Esse morto tão útil, pelo menos enquanto morto, perece por não suportar o dilema retratado por Rosálio, protagonista de O voo da guará vermelha, de Maria Valéria Rezende, quando fica numa situação-limite bem atual, e que não tem guerra nem nazismo para justificá-la, o trabalho rural escravo: Um corpo de homem agüenta mais do que a gente imagina, por vontade de viver, mas a alma é outras coisa, vai morrendo mais depressa quando perde a esperança”.
Também a essa altura, já começara a trocar e-mails com ela, e finalmente nos encontramos (aqui em Santos, ainda faltavam alguns anos para as memoráveis viagem a João Pessoa). Não que isso fosse inevitável ou necessário, pelo menos para a apreciação de sua obra (será que é preciso, de fato, enfatizar isso?). No entanto, pelas razões aludidas mais acima, foi um grande ganho na minha vida. Aliás, retomando o fio deste meu texto, penso que ele fala até mais de mim quanto da autora de que deveria me ocupar essencialmente. Deixo como está. Espero ter enriquecido a vida dela pelo menos ¼ do que enriqueceu a minha.
Aí veio sua participação na FLIP, o infarto em plena festa literária,  justamente quando ela alcançava seu momento mais midiático. E também veio  a coletânea que mostrava seu lado mais urbano, cosmopolita, também  um mundo da memória de gerações mais antigas, um recuo no tempo (recuo que dá o tom de várias narrativas), tanto quanto Vasto Mundo era um mundo regido pelo espaço: Modo de apanhar pássaros à mão, assim como o lançamento anterior, editado pela Objetiva.
Sempre penso nesse livro como uma paleta diversificada e caleidoscópica em que o pintor pôde exibir todas as suas cores, ou seja, como a prova—se é que era necessária—de que não havia recurso literário ou técnica  narrativa que Maria Valéria não dominasse, e que circunscrevê-la ao mundo rural, ao regionalismo, a um determinado contorno, enfim, era vã tarefa. Ela seria como Rosálio, seu protagonista tão carismático, de O voo da guará vermelha: sua sina era ganhar o mundo.
modo
Eu até tinha certa nostalgia de Farinhada, mas fiquei fascinado com a paleta que me era exibida (por isso, durante muito tempo, na minha cabeça, Modo de apanhar pássaros à mão se me afigurava meu livro predileto dela; relendo os dois primeiros constato que, malgrado sua alta qualidade, eu gosto muito, muito, muito deles, para que outro figure como um suposto “predileto”); e a partir daí, através de textos que infelizmente continuam inéditos, por razões editoriais, por razões do jogo da vida (uma existência muito ocupada com os outros, com os fatos, com os projetos, com o vasto mundo), percebi que esse universo estava mesmo em expansão.
Um universo tão voraz que me transformou até em personagem de um conto: ao participar de uma das inúmeras coletâneas que homenagearam Machado de Assis em seu centenário, em 2008, Capitu mandou flores (organizada por Rinaldo de Fernandes para a Geração Editorial), com o conto (que enceta o diálogo intertextual com A causa secreta) “Da Lapa ao Cosme Velho”, a marota da autora começa assim (já que eu lhe dera a sugestão de como abordar o relato machadiano):
“Sei da história toda porque me foi contada pelo próprio Machado de Assis. Hoje, lembrei-me dela, depois de muitos anos, e ocorreu-me escrevê-la porque alguém, o Monte, jovem colega de redação, na hora do café, comentou comigo que, entre os inúmeros contos de Machado que já lera, havia um que lhe parecia destoar dos demais, um conto estranho na sua crueza, sem aquela piscadela maliciosa, sem o sorriso do próprio escritor que acreditamos vislumbrar, por detrás das linhas, na maioria de suas histórias.”
Pois bem, ainda aguardo a publicação dos textos maravilhosos que li nestes últimos anos, tanto os acabados como os “work in progress”, um dos quais surgido com a estadia da intrépida autora, que não sossega (quando me dou conta, ela está alhures e acolá), durante um mês, em Porto Alegre, explorando as brechas na superfície aparentemente monolítica do mundo capitalista pós-industrial, pós-tudo.
Até por razões econômicas (devido aos programas do MEC de incentivo à distribuição de livros nas escolas), mas fundamentalmente  movida por sua preocupação com a formação de novos leitores (inclusive aquela fatia tão desprezada, a dos alunos do EJA, o antigo supletivo), Maria Valéria iniciou a partir de 2007 uma intensa produção na área infanto-juvenil, que vem se estendendo desde poemas e haicais (adoro o premiado Conversa de passarinhos, em co-autoria com Alice Ruiz, e No risco do caracol) até um delicioso livro infantil chamado O problema do pato (em que mostra, através da técnica consagrada pela tradição, de fazer um grupo de crianças viajar por diversos países e costumes, a preocupação das civlizações com a morte e as pompas fúnebres), passando por um conjunto de quatro relatos que compõem um livro eu considero uma obra-prima no gênero: O arqueólogo do futuro. Um pouco do meu entusiasmo pelo livro acho que transparece na resenha publicada em: http://armonte.wordpress.com/2012/12/07/um-momento-de-alegria-purinha-a-historia-sem-fim-de-o-arqueologo-do-futuro/
capitumandouflores
Mais recentemente, ela enveredou pela tradução (neste 2012, por exemplo, a Autêntica publicou sua versão do maravilhoso Micrômegas, de Voltaire, e agora a incansável trabalhadora das letras finalizou a nova versão de Kim; quando ela me disse que estava traduzindo o romance de Kipling, mais uma vez senti o sopro do destino, da “coisa feita lá no céu”: pois não é que esse livro é um dos pilares da minha infância, na versão clássica de Monteiro Lobato?  Kim foi quem eu sempre quis ser, quando garoto, tendo como o único rival à altura, Tom Sawyer).
Os “work in progress” e o volume de contos acabado, polido, depurado, quintessencializado, ainda não vieram a lume. Mas em 2012, ela que, três anos atrás, surpreendera com a reescrita de algumas de suas histórias em dicção mais popular (no sentido de acessível ao neoleitor), na coletânea Histórias daqui e d´acolá (que marcou o início de sua colaboração com o admirável ilustrador Diogo Droschi, um achado), utilizou as aventuras de Rosálio, de O voo da guará vermelha, rebatizado como Marílio, para nos dar um livro que deveria aparecer em todas as listas de destaque do ano: Ouro dentro da cabeça, com o qual minha coluna em A TRIBUNA reencontrou sua obra, após cinco anos de ausência, como se pode ver em: http://armonte.wordpress.com/2012/12/04/a-voz-do-povo-ouro-dentro-da-cabeca/
Maria Valéria Rezende gosta de descortinar e desbravar territórios novos (ela nos levou até a China, em um dos relatos de O arqueólogo do futuro). Foi assim que transformou o conto-título de Vasto Mundo (rebatizado em Histórias daqui e d´acolá em “O mundo visto do alto”) numa espécie de paradigma da sua visão-de-mundo, ao mostrar seu personagem subindo na ponta da torre da igreja:
“Preá  respira todo o ar do mundo e olha: lá embaixo o carro preto, a mala, a moça acenando. Só quando o carro que leva a moça desaparece ao longe, numa nuvem de poeira, é que o olhar de Preá, liberto, encontra o horizonte. Lá de cima, passeia, vaga, vê. E Preá descobre que vasto é o mundo.”[1]
Uma das anedotas biográficas de Rosálio em O voo da guará vermelha é retomada no capítulo “Um voo por cima do mundo”, em Ouro dentro da cabeça. Fugindo do mundo de obsessão doentia, ganância e, paradoxalmente, penúria, que é o da mineração de ouro, graças a compaixão (pois é, é uma palavra recorrente nesse universo autoral) da dona da pensão onde vive, o herói vive a experiência de ser passageiro de avião pela primeira vez (reproduzo a forma tipográfica peculiar e altamente expressiva do mais recente livro de Maria Valéria):
“Até hoje ainda não sei qual foi o maior benefício
que aquela mulher me fez, se me livrar dos perigos
da vida de garimpeiro ou se me dar de presente
um voo por cima do mundo. Eu subi no avião (…)
(…) Meu coração foi inchando
de uma emoção sem tamanho, e as palavras de alegria
querendo sair da boca. Olhei e não vi mais ninguém
que se importasse comigo nem com aquela maravilha
que eu via de lá de cima (…)
(…) Mas o avião subia, subia cada vez mais,
e de repente o mundo lá embaixo foi sumindo,
e eu me vi boiando dentro de um capucho de algodão.
Compreendi que era uma nuvem. Aí o susto foi grande!
Pensei:
__Com mais um pouquinho ele vai bater no céu,
o avião se despedaça, e eu vou chover na mata (…)
(…) até que vi, assombrado, que as nuvens foram passando,
e eu estava acima delas. Embaixo um colchão macio
como de penas de ganso, mais acima o céu azul,
azul de doer a vista. O avião, bem tranquilo, subindo,
subindo mais.
   Daí clareou-se a mente, conheci o meu engano,
porque eu pensava que nuvens, sol, lua e estrelas
viajavam agarrados num teto azul que era o céu
girando devagarinho como se fosse um moinho
carregando aquilo tudo.
   Agora eu via que o céu era um azul sem fim
e que as nuvens e os astros viajam livres e soltos.
Como? Eu ainda não sei, mas sei que é assim porque vi.
Há de ser arte de Deus.”
CONVERSA
   Portanto, resumindo o mote, o vasto mundo está sempre aí, para ser descortinado. Por isso, sempre penso no conto “O muro” como uma poética, e mesmo uma alegoria, do universo de Maria Valéria Rezende, das suas escolhas pessoais e das suas opções como escritora. Nele, uma narradora enfrenta, a princípio involuntariamente,  o descenso (no nível social, enquanto bandeação para o lado excluído e degradado, no caso, uma favela apartada do resto da cidade, através de um muro), que é, simbolicamente, uma ascensão (para  uma percepção diferente do Outro, a uma identificação com ele, a um encontro consigo mesma e com a ideia mais humana, demasiada humana, do que é o Divino; e, mais uma vez, a compaixão):

O MURO

…la resistencia absurda de un mundo resquebrajado que sigue defendiendo rabiosamente sus formas más caducas…
Julio Cortazar
Hoje fecharão a última brecha do muro. Já não haverá mais passagem alguma, nem um buraco para espiar de um lado para outro, nem uma frincha sequer por onde possa minar algum fluído, já nada nem ninguém poderá entrar nem sair. Há que escolher agora de que lado permanecer. Quem ficar lá dentro será para sempre, dizem eles, para sempre. A altura do muro, cuja beirada chega ao mesmo nível que o topo do morro que ele cerca, foi calculada para que ninguém possa ultrapassá-lo, já que eles têm certeza de que nenhum dos que ali se encerrarão é capaz de voar.
Não há hipótese de que os de dentro possam, como sempre fizeram, cavar túneis e, como ratos, escapar pelos esgotos da cidade. O grande império do norte cedeu imensos blocos de um novo material cuja fórmula é secreta, sabemos apenas que é produzido com substâncias de asteróides e poeira de cauda de cometas, fruto de um fantástico esforço de desenvolvimento tecnológico para a paz, explicaram, blocos impenetráveis, assentados desde profundidades insuportáveis para seres humanos e mesmo para ex-humanos. Este é o primeiro muro desse projeto. Os planos incluem mais de uma centena deles. Serão a solução, dizem, haverá paz no mundo, afinal.
Resta uma única brecha, estreita e vertical, sobre a boca de um fosso que desce até à porta do inferno. Uma ponte de tábuas mal pregadas atravessa o fosso neste último trecho ainda vazio. A ossada de um descomunal dinossauro de ferro retém nos dentes um dos últimos blocos, sobre as nossas cabeças. Eu aqui estou, a poucos metros da abertura, tenho medo, tento compreender por que vim parar aqui, ainda espero voltar para trás, talvez. Meus olhos e meu cérebro registram tudo, com a frieza de uma câmara digital, mas tenho medo, devo ter muito medo e confusão.
Desde o início acompanhei da minha varanda o movimento das obras, ao longe. Quando assentaram a fileira superior de blocos e o espantoso projeto revelou-se por inteiro, deve ter-me deixado boquiaberta pois, um dia, há cerca de uma semana, sem que eu percebesse o perigo, o anzol de Deus fisgou-me no céu da boca e desde então Ele vem puxando a linha, devagarzinho, incansável. Não me pude libertar do anzol e, debatendo-me, fui arrastada até aqui.
Deus é um pescador surdo e eu já mal posso gritar, com este anzol fincado na boca. Nem me mover posso, estendida assim, no chão, sob o corpo de um menino incrivelmente pesado, tão magro! Caímos aqui, os dois, embolados, bem no meio do rego de águas imundas que desce do morro e desaparece no sumidouro sob a ponte de tábuas. Estou do lado de dentro do muro. Nem percebi que entrava. Eu estava ainda lá fora, resistindo como podia à força da linha, quando vi um menino traçando, com um jato de tinta vermelha, sua marca tribal na superfície virgem do muro, bem ao lado da brecha, antes que os homens armados que vigiam a entrada o pudessem impedir. Mal vi quando o agarraram e lhe torceram o braço, porque a linha de Deus, como se passasse entre os corpos dos guardas e o da sua presa, num último puxão, atraiu-me contra eles com tal violência que os separou, atirando-nos, o menino e eu, através da abertura.
Devo ter batido a cabeça com muita força, ao cair, porque me dói e ainda estou um pouco tonta. Demorei-me estirada no chão, mesmo depois que o menino se refez, saltou de pé, libertando-me, e o vi correr em direção a uma das subidas do morro, levando na mão seu spray de tinta, na ponta do braço elevado, como se carregasse uma tocha. Tive vontade de simplesmente ficar ali deitada, numa espécie de paz que me veio quando deixei de sentir a dor do anzol no céu da boca, mas à minha volta formava-se uma multidão que se adensava rapidamente, acotovelando-se, afunilando-se em direção à precária ponte de madeira sobre o fosso. Temi ser pisoteada, levantei-me com esforço, tonta, empurraram-me, para dentro, mais para dentro até que me vi junto ao ângulo de um dos becos que se enrosca morro acima.
arqueólogoproblema do patonoriscoouro
Nem pensei em voltar para a passagem no muro. Deus atirou-me para dentro de seu samburá de estreita boca, já não me debato. Soube logo que subiria, mas não por qual caminho, até que vi, pouco mais adiante, numa parede suja daquele mesmo beco, a marca do menino magro, fresca e brilhante, um fio de vermelho líquido ainda escorrendo. O único sinal que eu, vagamente, podia interpretar, neste mundo estranho onde nunca antes sequer imaginei penetrar. Meti-me pela viela que, alguns metros adiante, ao topar com uma parede de zinco e madeira carcomida, quebrava-se para a esquerda. Ninguém. Tive a impressão de que já não havia mais ninguém nesse labirinto, só eu e o menino pichador, porque pouco antes de que o caminho se bifurcasse, mais acima, vi outra vez a rubra assinatura. Sem outro fio senão aquele para guiar-me, eu o segui. Hesitei na bifurcação, mas ela estava lá outra vez, a marca, dizendo-me que lado escolher, direção que tomei sem mais duvidar, entranhando-me na armadilha das ruelas intrincadas.
Afastei-me cada vez mais da saída para o mundo de fora, pouco a pouco os ruídos do tumulto lá de baixo foram-se apagando de meus ouvidos e pude perceber outros sons, muito mais próximos, por detrás das paredes lodosas que me cercavam, ruídos de vida, alguém que escarrava, alguém que gemia, sem que eu distinguisse se de dor ou de prazer, uma porta que rangia, e então comecei a vê-los, por toda parte, acima de minha cabeça, a mulher velha debruçando-se perigosamente da beirada de uma laje torta, mais adiante, um pequeno pé, calçado em borracha gasta, de alguém que virava apressadamente uma esquina, um olho congestionado, entre as duas folhas desencontradas de uma janela, uma cabeça de menina projetando-se de uma porta para logo esconder-se de novo. Espiavam-me, fugiam de mim como bichos ariscos, pensei, para em seguida perguntar-me se não teria, eu mesma, um aspecto amedrontador para eles. Mas as mal traçadas linhas vermelhas se repetiam a intervalos regulares, aparecendo sempre diante de mim quando o caminho parecia findar num ângulo abrupto, atraindo-me para cima, como antes me havia puxado a linha de Deus, e eu segui adiante porque nada mais podia fazer.
Segui, sem deter-me, sem reagir a nada, nem mesmo quando a subida tornou-se mais íngreme e custosa, nem quando as ruelas começaram a encher-se  de viventes que me olhavam descaradamente, já sem espanto, como a me desafiar, quando seu cheiro me agrediu as narinas e suas vozes me soaram duras, esganiçadas ou fanhosas, quando vi bocas que riam de mim, que estropiavam as palavras, caras escuras que eu não podia reconhecer, feios, talvez maus, imaginei, como disseram que eles são.
Compreendo agora porque já parecem ter-me esquecido. Eles continuam por aí, há milhares deles, milhares, amontoados, pelos becos, pelas vielas, nos cantos, por detrás das portas tortas, mas nem se importam mais comigo. Há pouco percebi que já não me vêem porque me estou tornando parecida com eles. Ao virar a esquina de uma ruela deparei-me com o vulto de uma mulher envelhecida, desgrenhada, escura, como todas as outras, mas vagamente familiar. Hesitei, surpresa, creio que esbocei um gesto qualquer, interrompido pela descoberta de que diante de mim, apoiada contra uma parede, o que havia era a porta arrancada de um guarda-roupa com  um resto de espelho.
Sinto-me invisível agora e por isso, talvez, segura. Continuo subindo. Irei até ao alto.
Vou chegando ao topo do morro, olho para baixo e contemplo o que desde agora será tudo. O mundo condenado. Ouço gritos, o som exasperante de uma sirene, vão concluir a clausura, meu olhar alcança ainda uma nesga do outro, o lá de fora, o que será preservado, dizem. O último imenso bloco cinzento encaixa-se no seu lugar com estrondo. Escurece e já não tenho mais para onde ir.
Estou só, aqui em cima, onde não há construções humanas, apenas um imenso ovo de pedra bruta para o qual me volto e no qual me absorvo até ensurdecer, sem saber se tudo o que vi ainda existe ou se o mundo ainda está por nascer.
De repente, entre eu e a pedra, o menino do spray de tinta, o gesto rápido, sua inscrição rupestre. “Quer pichar também, tia?”
Obrigado por tudo, Maria Valéria.
(escrito para o blog, em dezembro de 2012)
Nota- Este post era constituído, a princípio,  por alguns dos textos cujo link foi fornecido ao longo dessa minha homenagem aos 70 anos de Maria Valéria Rezende; portanto, todos os comentários com data anterior a dezembro de 2012 referem-se a eles.
cuoremicromegas[3]

[1] Em Histórias daqui e d´acolá, transformado em Tatuzinho o personagem, lemos:
“Tatuzinho respira todo o ar do mundo e olha: lá embaixo vê o carro preto, a mala, a moça dando adeus ao povo na praça. Tatuzinho vê tudo tão pequeno, lá longe.
   Só quando o carro que leva a moça desaparece na curva, numa nuvem de poeira, é que o olhar de Tatuzinho se liberta, encontra o horizonte.
  Lá de cima, a vista do menino passeia, vaga, vê campos, estradas, povoados e serras. E Tatuzinho descobre que vasto é o mundo.”

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...