Shakespeare e Ricardo III
O que vem a ser essa história, e onde está à verdade no meio de tudo isso? O debate promete ser longo: a ciência contra Shakespeare.
Ricardo III é uma das primeiras peças de Shakespeare, escrita em 1592 – ele começou a escrever para valer em 1589, aos 25 anos de idade – e faz parte do seu círculo de Peças Históricas. Ricardo III não é considerada pela crítica uma peça perfeita, pois é possível ver claramente um Shakespeare aprendendo a delinear seus personagens. O drama não tem a maturidade de Sonho de Uma Noite de Verão, Othelo ou qualquer outra de suas obras-primas.
Mas como Shakespeare é Shakespeare, e quaisquer sentenças que ele escreveu são canônicas, a peça é maravilhosa, um triunfo, e sempre desfrutou de enorme sucesso e continua sendo apresentada e aplaudida em todo mundo. Agora mesmo, aqui no Brasil, está sendo encenada há mais de três anos por um grupo de Natal, em forma de comédia, com o nome de “Sua Incelença Ricardo III”.
Segundo Shakespeare, o duque de Gloucester, o quarto na linha de sucessão ao trono da Inglaterra, infernizou a vida de seu irmão, o rei Eduardo IV, até matá-lo de desgosto; em seguida mandou matar o outro irmão, duque de Clarence, e por último seus dois jovens sobrinhos, até se tornar Ricardo III, o novo rei da Inglaterra.
Ricardo III só ficou dois anos no poder. E seu governo se deu durante a Guerra das Rosas, em que sua família, York, brigava com a família Lancaster pelo trono. Na batalha de Bosworth – Shakespeare o celebrizou com a frase: “Meu reino por um cavalo”! – contra seu primo Henrique Tudor, ele foi derrotado e morto, e Henrique assumiu como rei da Inglaterra, com o título de Henrique VII. A história é por aí.
O azar de Ricardo, e digamos que ele não fosse um rei tão cruel, é que quem pegou na pena para retratá-lo mais de cem anos após a sua morte, foi aquele que seria o maior dramaturgo de todos os tempos, com uma capacidade de transformar o real numa ficção mais forte e apaixonante do que os próprios fatos. E Shakespeare transformou Ricardo III em um dos vilões mais interessantes da história do Teatro.
Shakespeare criou uma personagem tão forte, tão marcante: corcunda, malvado, perverso, cínico, irônico e engraçado que acabou usurpando a própria história. Ricardo III é a única peça de Shakespeare que começa com um monólogo – conhecido, decorado e declamado por todos os estudantes de língua inglesa no período escolar – em que Ricardo disserta sobre sua personalidade. Dizendo: “Mas eu que não fui talhado para habilidades esportivas, nem para cortejar um espelho amoroso: que grosseiramente feito e sem a majestade do amor para pavonear-me diante de uma ninfa de lascivos requebros; eu, privado dessa bela proporção, desprovido de todo o encanto pela pérfida natureza; disforme inacabado, enviado por ela antes do tempo para esse mundo dos vivos; terminado pela metade; tão feio e fora de moda que os cães ladram para mim quando passo perto deles”. E conclui, que: “quando nasceu, já veio com dentes, nasceu para morder o mundo”.
Pois é o caráter de Ricardo III, que os cientistas, à luz de seus ossos, se propõem a estudar, esmiuçar, por moderníssimos exames computadorizados, para saber o que ele comia, como se deitava, se era doente, se fazia exercícios… E daí vão tentar – chutar, especular – adivinhar seus humores, sua personalidade, caráter, religiosidade etc. E tentar provar que Ricardo III não era um perverso como Shakespeare o pintou. A ciência está dizendo que vai descrever o caráter de um homem com base em alguns ossos de mais de 500 anos. Uma máscara mortuária foi feita, e já foi dito (risos) que um homem de lábios finos como Ricardo não poderia ser um assassino. Cesare Lombroso adoraria a afirmação!
Sobre a quase máscara mortuária de Ricardo é o próprio Shakespeare quem responde aos cientistas, quando diz, em Macbeth: “Não existe arte que possa decifrar o sentido da alma pela face”. Se preparem, teremos uma longa batalha pela frente. Pois se contrapor a Shakespeare não é tarefa fácil. Mas os cientistas sabem que isso dá prestígio. Uma coisa eu posso dar certeza, aconteça o que acontecer, a peça Ricardo III continuará um triunfo teatral, seja qual for a verdade, se é que existe uma!
* Copiado do blog http://theofilosilva.com/home/
Nenhum comentário:
Postar um comentário