quarta-feira, 8 de maio de 2013

CARLOS TRIGUEIRO: UM CEARENSE DE CORAÇÃO (por Pedro Salgueiro)


                                                                              
  “Dos rincões que pisei fora do Amazonas, nenhum deixou sulcos mais profundos na minha alma que o Ceará.”
(Carlos Trigueiro – Memórias de Liberdade)
O povo alencarino se tornou conhecido por sair mundo afora, buscando sustento físico e espiritual. Todo cantinho do mundo que se preze tem um cearense como habitante, seja ele porteiro ou cientista, padeiro ou escritor. Dizem que quando Neil Armstrong chegou à lua por lá encontrou uma rapadura e um restinho de farinha, esquecidos por algum cabeça-chata. Certa vez perguntaram ao nosso cronista maior Rubem Braga se ele realmente tinha sido o primeiro repórter brasileiro a cobrir uma grande guerra. Ele pensou um pouco, deu um raro sorriso e sapecou: “– Rapaz, não sei. Pode ser que algum cearense tenha se antecipado”. Ele mesmo andou por aqui, conheceu sertões e tirou fotos em jangadas.

Infinitos foram, pois, os cearenses que partiram para outros estados, países e planetas, mas também muitos foram os forasteiros que por aqui “sentaram praça”. Para só falar em “homens de letras”, citaria (com a ajuda do amigo Sânzio de Azevedo) os baianos Demócrito Rocha e Rodolfo Theófilo, os maranhenses Mozart Soriano Aderaldo e Ribamar Lopes, os cariocas Pápi Júnior e Eduardo Luz, o piauiense Teoberto Landim, além do caso mais recente do acreano Jorge Tufic. Dentre esses uma boa quantidade residiu aqui por um tempo e depois seguiu estrada, como os piauienses Assis Brasil e Sinval Sá, a norte-rio-grandense Socorro Trindad e o maranhense Rinaldo de Fernandes.

Um caso curioso foi o do amazonense, nascido em 1943, Carlos Trigueiro, que veio para o Ceará em 1951 e por aqui viveu até 1956. Curtiu sua infância entre dunas e falésias de nossas praias ainda quase virgens de habitações. Desses cinco anos cearenses o escritor – que foi para o Rio de Janeiro, e de lá seguiu para Roma (Itália), Madri (Espanha), Macau (China) e Chicago (EUA), até fixar residência novamente no Rio – nunca esqueceu. Tanto em suas memórias pessoais, quanto em suas ficções, vez em quando aquela meia década da infância volta a assombrá-lo, ou melhor: a maravilhá-lo.
Tomei conhecimento dele através de seu instigante livro de contos Clube dos Feios, ainda na década de 1990, depois fui lendo outros – Livro dos Ciúmes, Livro dos Desmandamentos, Confissões de Um Anjo da Guarda e Libido aos Pedaços –, mas apenas recentemente trocamos correspondências eletrônicas e envios de livros. Agora me presenteou com uma bela miscelânea intitulada Meu Brechó de Textos, lançada para comemorar seus 70 anos. Nele, como nos outros volumes, de vez em quando nos deparamos com a brisa forte, um sol escaldante, o nosso calor humano.

Em seu Memórias da Liberdade se lê sobre Fortaleza, na página 27: “Meus avós eram daqueles cearenses de fibra indomável, com o verde dos mares alencarinos no mormaço dos olhos; gente da tez erguida, do pescoço espichado, do gogó saliente, não por orgulho, mas pelo costume da atenção voltada para os céus, na esperança de chuva. (...) Com a versatilidade da carnaubeira, a doçura do sapoti e a invencibilidade do umbuzeiro, o espírito cearense era talhado para a conquista da Amazônia. Cearenses. Conquistaram o que podiam. Como podiam. Acostumados no sertão árido com o deslumbramento provocado por uma quartinha de água salobra chorada por algum olho-d’água intermitente, entre as rugas da caatinga, descobriam num suspiro de êxtase a grandiosidade das águas amazônicas. Cearenses. Aos milhares, carregando redes, farnéis, paneiros, teréns e peixeiras, largavam o sertão dorido e embarcavam para o Norte da promissão. Como todos os migrantes, levavam no peito a riqueza dos humildes: o palpitar da esperança.  Com tremenda capacidade de adaptação trocavam o maneiro-pau pelo bumba-meu-boi, o seriguela pelo araçá, a poeira seca da caatinga pelo úmido anixi.”. Na 89: “O Ceará desse (daquele) tempo ainda recendia a cajuína, jangadas do Mucuripe, promessas a São Francisco de Canindé, estórias do padre Cícero, chuva do caju, tertúlias, novidades da Livraria Alaor, movimento na Praça do Ferreira, filas no cinema Majestic, declamações nos palcos do SESI  e do Teatro Juvenal Galeno, ao Centro Estudantal Cearense”. E na 123: “Ceará. Fortaleza: Capital do meu estado de meninice trêfega. Contavam-se nas mãos as construções que se nivelavam com o porte dos coqueiros. A cidade era praticamente horizontal. Só muito recente a verticalidade urbana viria afetar a concepção cearense de morar. Cearense sempre gostou de chão, de terreno, de casa com quintal, quintal com terreiro, e de areal, praia, duna, sertão. Naquele germinar dos anos 1950, empertigavam-se por cima das casas o Cine Diogo, o Hotel Excelsior, o prédio do I.A.P.C. e um ou outro lá para o lado das praias de Meireles e da Iracema. A vida era horizontal. O mundo: rasteiro, fácil, palpável. A existência era uma história comprida que só terminava para os outros. Vivia-se ao comprido; os pés mantinham diálogo permanente com o chão. (...) Na casa onde morávamos (Rua D. Pedro I), a porta da frente não era entrada nem saída pra o mundo lá fora. A casa, a porta, a calçada, a rua, o poste, o canto, a bodega, o colégio, a carvoaria, o sapateiro, a praça, o areal, o céu e o mar faziam parte de um único todo perfeitamente compreensível e espontâneo. A janela era um balcão onde pousávamos os cotovelos e de onde decolávamos nossas quimeras e bolhas de sabão. Pela porta da frente, entravam o suor de meu pai com  as bolsas de mercado e a água de colônia das freguesas de costuras de minha mãe. Pela porta dos fundos, fugíamos nós, fedelhos ariscos vencendo muros, muretas, cercas e telhados, de quintal em quintal.”. Já nas páginas 125 e 126: “... Fortaleza dos meus tempos. Dias feitos de casas, ruas, pessoas, conversas pelos cantos, notícias de boca em boca, de chuvas temperando o cheiro da terra e de sóis quase musicais. Noites de céu estrelado, sereno aromático, cadeira de balanço nas calçadas, estórias sob lampiões, ilusões sobre amanhãs. (...) A rua onde nos reuníamos para os jogos e brincadeiras era a Senador Pompeu. Nas suas calçadas bem-feitas, dissimulávamos os malfeitos da idade. Molecávamos à sombra dos oitizeiros, das castanheiras, jogávamos bilas, tampinhas, bolas de meia, e nós mesmos nos embolávamos de vez em quando. Brincávamos a vida e vivíamos as brincadeiras...”
Dia desses perguntei ao já amigo Carlos Trigueiro o que o fazia guardar por tanto tempo o nosso Ceará em seu coração. Ele me respostou “que saí do Ceará em 1956, mas o Ceará nunca saiu de mim. Na minha formação intelectual três cearenses tiveram importância fundamental: o poeta Filgueiras Lima, que foi meu professor no Colégio Lourenço Filho; Dona Dorinha, que me dava aulas particulares  e foi quem primeiro me ensinou as propriedades aritméticas e a raciocinar com frações próprias e impróprias – ela própria me parecia uma fração imprópria de algum personagem extraído das páginas de Charles Dickens; e a terceira personagem foi a professora Zuma, no quarto ano primário – do Grupo Escolar dos Merceeiros –, que me presenteou As aventuras de Tom Sawyer de Mark Twain –, o qual eu li no mínimo cem vezes, e que foi o livro responsável por eu ter entrado nesse mundo encantado da literatura.”

São casos assim, de amor duradouro por uma terra que não é sua de nascença, que fico a pensar no descaso, no desamor que muitos cearenses nutrem pelo seu torrão natal. E não deixo de me abismar com os dois extremos: o do amor incondicional e despretensioso; mas também o do desapego e desleixo, com que a maioria de nossos conterrâneos age em relação ao nosso chão tão querido.
* Crônica publicada no jornal O Povo: http://www.opovo.com.br/app/colunas/pedrosalgueiro/2013/05/08/noticiaspedrosalgueiro,3052173/carlos-trigueiro-um-cearense-de-coracao.shtml

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