quarta-feira, 15 de maio de 2013

J. M. COETZEE (por Sérgio Rodrigues)

‘A infância de Jesus’: o gesto primordial da literatura



Em seu novo romance, “A infância de Jesus” (Companhia das Letras, tradução de José Rubens Siqueira, 304 páginas, R$ 44,00), J.M. Coetzee leva a investigação ética que sempre foi o principal motor de sua literatura a um plano de inédita rarefação. Descarnada e assumidamente alegórica desde o título, a narrativa desenha uma série de parábolas provisórias e inacabadas que se corrigem e se negam o tempo todo, recusando ao leitor o prazer de fechar um sentido e dizer: “Ah, então é isso!” – prazer que se pode chamar de fácil, mas do qual é dificílimo abdicar por completo, sob risco de inviabilização não apenas da literatura mas da própria linguagem. O que confirma o sul-africano, no mínimo, como o mais corajoso dos grandes escritores vivos.


A história em si é tão simples, linear e desprovida de enfeites quanto a prosa em que é apresentada. Depois de atravessar o oceano, um homem de meia-idade, Simón, chega com um menino de cinco anos a uma terra desconhecida em busca de vida nova. O menino, David, é brilhante, mimado, voluntarioso, irritante. Não é parente do homem, mas uma alma desgarrada com a qual ele esbarrou no navio. Por razões pouco claras, Simón resolve responsabilizar-se por David e ajudá-lo a encontrar a mãe, que já estaria na nova terra. A tarefa beira o impossível: a carta que o menino trazia presa ao pescoço perdeu-se no mar e, para complicar, todos os recém-chegados ganham novos nomes e são incentivados a abandonar suas memórias. Seus nomes verdadeiros não são Simón e David.



Na nova terra, Novilla, onde se fala espanhol, a dupla é recebida por uma burocracia estatal tosca, ainda que benevolente, que após o desacerto inicial trata de suprir suas necessidades básicas: trabalho, casa, comida. Nesse cenário nu de peças esparsas – como numa montagem teatral moderna, aqui temos uma cadeira, ali uma porta, o resto fica por conta do freguês – entrevemos uma espécie de Estado socialista decente, mas pobre. Simón trabalha como estivador. Os dois se alimentam de pão, água e pasta de feijão sem tempero. Ninguém usa sal na comida ou ironia nas conversas. As pessoas são gentis e o mais perto que chegam de se divertir é frequentar cursos de filosofia em que se discutem questões como a cadeiridade da cadeira.

Simón reluta em abrir mão dos valores da velha terra. A falta de conforto e prazeres mundanos o deixa cada vez mais incomodado, mas não parece ser um problema para os demais. O ideal ético da harmonia universal foi atingido em Novilla à custa da negação dos apetites humanos, uma supressão tão bem internalizada que nunca explode (com uma única exceção) em violência. A essa ética Simón opõe a estética do mundo sensível, como a compreendia Kierkegaard. Aferrado à ambivalência irredutível da condição humana, ele poderia dizer, citando o filósofo dinamarquês e sem destoar do tom geral do livro: “O desespero da infinitude é carecer de finitude, o desespero da finitude é carecer de infinitude”. Elena, sua vizinha, teria a resposta pronta: “Essa insatisfação sem fim, esse anseio pelo algo mais que está faltando, é o jeito de pensar de que fazemos bem em nos livrar, na minha opinião”.



Depois de alguma insistência, Simón consegue levar Elena para a cama, mas o sexo que fazem é tão desprovido de sabor quanto a onipresente pasta de feijão. Outra personagem, Ana, recusando suas investidas, acusa-o de querer “me abraçar apertado e enfiar uma parte do seu corpo dentro de mim”. O jeito pueril de falar, como se a linguagem tivesse que ser tateada em busca de sentidos ainda tenros numa espécie de aurora do mundo, perpassa todo o livro e desemboca nas discussões filosóficas que os personagens travam a propósito de tudo. Sem deixar de ser inteligentes, os debates são frequentemente ingênuos e até cômicos, deixando o leitor em dúvida sobre as reais intenções do autor. Tais dúvidas vão se somando a outras, em efeito cumulativo. Se não existe apetite sexual em Novilla, por que o Estado mantém um burocratizado serviço de prostituição? Se ninguém mais come carne, como acontece de alguns comerem carne? Se a parca riqueza é distribuída fraternalmente, por que há ricos? Se não há crime e todo mundo tem o coração cheio de boa vontade, como se explica um personagem como Daga, o canalha?

Sem esboçar resposta a nada disso, a estranha alegoria de Coetzee desafia o leitor, negando-lhe de forma sistemática uma interpretação unívoca que aplaque sua fome – mais ou menos como o pão de Novilla não aplaca a de Simón. Não se trata apenas de uma história passada em espaço “puramente” ficcional, mítico, que pode ser compreendido como arcaico, atemporal, pós-nuclear ou além-morte. Isso não seria novo em Coetzee. Trata-se também de uma história que recusa tanto o paralelo historicamente claro de “À espera dos bárbaros”, romance decodificável como parábola do apartheid sul-africano, quanto o pós-modernismo metalinguístico de um livro esquisito como “Foe”, história sobre a história por trás da história de Robinson Crusoé, em que a obscuridade da narrativa se refugia no álibi estetizante de uma certa “linguagem poética”.



Em “A infância de Jesus” não há o que se costuma entender por “linguagem poética”. O mundo é concreto e a linguagem, despojada até a mais básica referencialidade. Só não se pode afirmar ao certo a que ela se refere. Se não for apenas uma pista falsa, a chave cristã que o título fornece – e que parece confirmada por uma série de situações e imagens como pão, vinho, tentativas de ressuscitar os mortos, a mãe virginal (e arbitrária) que Simón acaba encontrando para David – é sem dúvida parcial, incapaz de abrir todas as portas. Vale pelo menos tanto quanto a chave literária oferecida pelo “Dom Quixote”, livro com o qual Simón ensina David a ler – e que na implacável máquina de estranhamento do romance não foi escrito por Cervantes, mas por “um homem chamado Benengeli”. Ou mesmo quanto a chave matemática da imagem recorrente dos números como ilhas de ordem no caos, em cujas frestas David tem medo de despencar.

Alegoria filosófica, moral, política, religiosa, metalinguística, “A infância de Jesus” pode ser tudo ou nada disso, dependendo do leitor. O autor parece seguir à risca o conselho daquele seu alter ego, JC, em “Diário de um ano ruim”: “Nunca tente se impor. Espere a história falar por si mesma. Espere e torça para que ela não nasça surda, muda e cega”. Essa abertura radical deixará furiosos alguns leitores, mas fará a delícia de outros. Aqui do meu lado, terminei a leitura atônito, com a cabeça zumbindo de possibilidades e certo de ter encontrado um belo romance que tenta – como tentou Samuel Beckett, autor que Coetzee admira – flagrar a literatura e a linguagem em seu gesto mais primordial e desesperado: o de atribuir sentido àquilo que não tem nenhum.




*Copiado de: http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/resenha/a-infancia-de-jesus-o-gesto-primordial-da-literatura/

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