segunda-feira, 3 de junho de 2013

JOÂO UBALDO RIBEIRO (Entrevista ao jornal O Povo)

Operário de Itaparica



Todo ano, o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro se faz uma promessa que não consegue cumprir. Tem tentado se desvencilhar nos últimos tempos dos chamados para eventos literários que chegam a sua caixa de e-mails rigorosamente todos os dias. “Ou eu sou duro (...) ou esqueça: minha obra futura vai ser só de e-mail”, explica, com a certeza de que, dessa vez, está firme para recusar o que vier. Já abortou vários inícios de romances por conta desses compromissos.

Quer viajar menos, se dedicar mais à Academia Brasileira de Letras, da qual faz parte, na cadeira 34, desde 1993, e principalmente se debruçar mais sobre novos projetos; o último foi o romance O Albatroz Azul, de 2009. A única viagem que se permite fazer sem restrições é à Ilha de Itaparica, onde revê os amigos e se inteira das fofocas e novidades do lugar. É lá onde se sente bem, com o povo do mercado de Santa Luzia.


João Ubaldo, nas palavras dele mesmo, não é um homem de letras. Apesar de aparentemente paradoxal, também não se sente mal no meio dos outros acadêmicos. “Não tenho raiva do domínio de letras. (...) Não vou para a Academia - como muita gente não vai - para bater papo literário”, revela. No discurso de Ubaldo, não há margem para um escritor distante, encastelado.

Muito ao contrário, o escritor que é João Ubaldo transita entre o mercado de Itaparica e a Academia de Letras sempre com a mesma tônica: a de que é um operário como outro qualquer. A escrita é quase um expediente, e a vida não se resume a isso. Por isso as viagens são tão penosas, porque, o mais das vezes, ele tem de encarar perguntas sobre as quais não está muito interessado. Nessa entrevista, ele fala da aura do escritor, da rotina da Academia, de Fernando Henrique Cardoso, de Itaparica e de catraca, seu maior medo.

O POVO - Essa viagem te atrapalhou em algum projeto?
João Ubaldo Ribeiro - Essa especificamente não, mas o conjunto das viagens me atrapalha muito. Muito.

OP - Como está a sua rotina? Tem escrito alguma coisa?
João Ubaldo - Todo ano eu prometo que não aceito mais nada. Mas sempre acontece alguma coisa que me dissuade disso. Mas fica cada vez mais firme a decisão de não aceitar. Mesmo que isso me custe fazer inimigos. As pessoas ficam inimigas. Insistem tanto para você aceitar o convite. Você explica que não pode, mas há ressentimento de que eu já fui a tal lugar e não fui lá. Mas ou faço isso ou não escrevo mais. Tem vários romances que eu abortei e que já não são recuperáveis.

OP - Mas para Frau (a professora da UFC, Ute) Hermanns não poderia negar a vinda...
João Ubaldo - É, ela é minha amiga de muitos anos. Com certeza deve ser a última viagem este ano. Veja como são as coisas: eu sou meio sergipano. Fui criado em Sergipe, batizado lá, nasci na Bahia e desde os 10, 11 anos morava lá - hoje moro no Rio -, mas tenho muito carinho por Sergipe. E Sargento Getúlio, o filme (de Hermanno Penna, baseado em livro homônimo de João Ubaldo), está fazendo 30 anos. Dois dias antes de vir pra cá, recebi um convite de Aracaju. Parte o coração rejeitar. Mas ou eu sou duro, porque já passei por esse tipo de coisa, ou esqueça: minha obra futura vai ser só de e-mail. Não vou a Aracaju.

OP - Como o sr. avalia a função do escritor hoje? Vivemos num mundo arredio à literatura?
João Ubaldo - Um ficcionista é um artista como outro qualquer. Não vou discutir filosofia da arte aqui. Mas, para sumarizar arbitrariamente, a arte é uma forma de percepção e conhecimento. Ela é necessária. E parece que sempre foi necessária, e sempre existiu arte de alguma forma. É ligada à natureza humana. Que forma ela toma, eu não sei. Não tenho paciência para examinar problemas teóricos. Estava dizendo ainda agora: eu não penso sobre o futuro. Enquanto eu escrevo, alguém publica, alguém lê, não vou ficar especulando sobre a morte do romance, sobre as formas. Isso é papo para amador. Dificilmente você vê escritor batendo papo sobre isso. Costumo almoçar às terças-feiras com o (escritor) Rubem Fonseca, que eu chamo de Zé Rubem, como a maior parte dos amigos chama. Nós ficamos conversando num lugar aberto para a calçada. É possível que gente passe e ache que eu e Zé Rubem estamos tendo altos papos estéticos. Na realidade, ele, que é viúvo, está comentando as moças que estão passando pela calçada. Estou perguntando quanto aquele ladrão daquele editor não sei das quantas pagou. (tom afetado) O romance morreu? As estruturas, o regionalismo, o modernismo? É papo de amador ou de crítico, que não é ficcionista, porque quem sabe faz, quem não sabe ensina.

OP - O escritor tem estado cada vez mais visível e perto do público. Você, por exemplo, é responsável por dessacralizar esse lugar do escritor. A aura antiga tem se esvaziado. Mas, aí que faço uma provocação, essa aura não é, por vezes, necessária à própria literatura?
João Ubaldo - Não adianta falar nada, porque essa aura ainda é emprestada pelas pessoas. Só não posso fazer nada quanto ao tipo de aura em que as pessoas me envolvem. Porque só sou responsável pela minha minúscula partezinha nesse todo. Aqui no Brasil é uma terra solene, adesista, puxa-saco do poder, então, nós solenizamos talvez a figura do escritor como solenizamos outras. É bem encontradiço que o sujeito saiba perfeitamente se expressar, tenha até felicidade de expressão oral, mas você coloca ele para fazer uma carta e ele passa uma hora por linha, porque acha que tem que vestir paletó e gravata para escrever. Fora do Brasil - ou aqui no Brasil também -, mas eu sei que (o político e escritor maranhense) Humberto Campos (1886-1934), ainda que mal comparando, era tão popular quanto Roberto Carlos. Não podia sair na rua. Hoje ninguém mais lê, mas era um escritor ligado a essas coisas. Existe uma certa tradição formal do Brasil; a academia com fardão. Um escritor como (Charles) Dickens, por exemplo. Um novo capítulo de um romance dele, que era publicado em folhetim semanalmente, movia multidões ao porto de Nova York para esperar. (Honoré) Balzac era metido a aristocrata, mas era um homem ligado também. Apesar de não querer, era um proletário das letras. (Fiódor) Dostoiévski, Walter Scott... Não é tanto assim, não. Os escritores americanos, muitos. Mas, se se quer emprestar a eles uma aura de mito, acho natural, porque o sujeito fica famoso. Eu, que não sou famoso como nenhum desses, já experimento esse tipo de coisa.

OP - Como?
João Ubaldo - As pessoas não notam que me olham de uma forma diferente de como olham para os outros. Acham que eu não devo ficar grilado ou intrigado com o que vou lhe contar. Em Itaparica, eu estava no mercado central... Muita gente pensa que eu vou para Itaparica para tirar coisas, para pesquisar. Eu vou para minha terra, para ver o pessoal com quem eu joguei bola quando era menino, contar fofoca, saber quem morreu, ver peixe no mercado. Então, estava no mercado e um camarada se levantou. Eu até tomei um susto. Eu estava sentado com uns amigos, a turma do mercado de Itaparica às seis horas da manhã. Aí o sujeito ficou em pé na minha frente assim. (Nesse momento, ele vai à ponta da cadeira, chega mais perto do repórter e arregala os olhos, estático). É a coisa mais desconcertante você sentado e um desconhecido assim. Outro dia estava na minha rua e passei por uma família. Tinham uns três garotos, uma velhota e um cara. Pararam a dois metros de mim. E a mulher disse: “Eu tinha certeza que ele era mais alto”. Me discutiam como quem está discutindo um móvel. .

OP - Você acha que é verdade que as pessoas leem pouco no Brasil? Grandes editores vieram para o Brasil nos últimos anos e não é para perder dinheiro.
João Ubaldo - A realidade é que aqui no Brasil vende pouco em termos relativos. A gente não pode esquecer que o Brasil é a sexta ou sétima população do mundo. É muita gente. Por menor que seja o mercado em termos relativos, em termos absolutos é um belo mercado. Se lê muito mais na Holanda, que é pequenininho, do que no Brasil. Mas, em compensação, a tiragem na Holanda seriam várias tiragens no Brasil. Existe um pouco de má interpretação dos dados.

OP - Com que escritores o senhor trava contato mais próximo?
João Ubaldo - Eu saio pouco. Não sou introvertido, mas também não sou sociável. Pareço que sou, mas não sou. Não gosto muito de sair, de reunião. Atualmente só tenho andado com Zé Rubem, que mora no mesmo bairro que eu, e uns dois ou três acadêmicos. Agora, muitos escritores brasileiros são meus amigos. Alguns já viajaram muito comigo: Lygia Fagundes Telles, Ignácio de Loyola Brandão, Márcio Souza, Moacyr Scliar, que morreu agora. Mas não tenho rodinha literária.

OP - Então, o senhor é um profissional escritor perdido ou deslocado dentro da Academia Brasileira de Letras?
João Ubaldo - Não. Porque tem muita gente lá que é parecida comigo. E eu também não tenho raiva do domínio de letras. Não sou homem de letras. Não vou para a Academia - como muita gente não vai - para bater papo literário. No famoso chá das cinco da Academia, que não é majoritariamente chá, poucos tomam chá, nem é às cinco, mas às três da tarde, é uma espécie de bufê enorme, cheio de gulodice, tudo quanto é docinho, frutinha. É uma festa. Parece aniversário de criança, um pouquinho adaptado para adulto. . Dificilmente alguém vai para esse chá dizer assim: “Você já viu o último ensaio de (filófoso francês Jacques) Derrida?”. Ninguém está ligando para esse negócio. “Quanto é que está lhe pagando aquele filho da puta lá na Polônia?”. O cara diz: “Ah, ele me deu sete”. “Filho da puta, ele me deu cinco”. O papo é esse.

OP - O senhor tem algum desafeto dentro da Academia?
João Ubaldo - Não. Existem e existirão sempre desavenças, mas são minoritárias. Quando há desavenças, dificilmente elas se manifestam em sessões ou mesmo no chá. Há sempre um trato cortês. Escrevi um artigo uma vez, quando Fernando Henrique Cardoso era presidente, dizendo até que mais fácil seria ele entrar na minha vaga. Agora ele é candidato oficialmente. Deve ter articulado a candidatura dele sem eu saber, porque ele sabe da minha posição. Mas me mandou o livro dele, mandou uma cartinha se candidatando, como é praxe. Está eleito praticamente. Não vou chamar jornal para casa para dizer: “Sobre o meu cadáver!”. Não vou fazer disso um cavalo de batalha. Também não sou inimigo dele. Não tenho entusiasmo intelectual por ele, mas acho que é um nome respeitável.

OP - Vou puxar um pouquinho papo de amador. O poeta romano Horácio diz: “Por que estás rindo? A história refere-se a ti, apenas o nome está mudado.” A história brasileira é risível por natureza?
João Ubaldo - Acho que toda a história da humanidade é risível se você a encarar por determinados ângulos. Acho que nós, brasileiros, com certeza, temos uma baixíssima autoestima. Nós, por exemplo, em vez de buscar conhecermos nossa história que, em grande parte, se mistura com a história de Portugal, nós não sabemos nada sobre Portugal. É comum que um colunista de jornal saiba tudo da topografia de Liverpool. O cara sabe minúcias horrorosas. Ou sobre Dublin. “Na esquina da rua tal, onde (o escritor James) Joyce fez xixi. Aí depois ele comeu fulana na rua tal”. Agora se disser assim: “Onde fica Crato?”. “Crato? Não é (com sotaque estrangeiro) Crato? Pensei que era Crato, Ohio”. Não, pô, é Crato, no Ceará. Aí você vai descrever Itaparica... “Ih, lá vem ele com regionalismo”. Descrever minuciosamente a topografia de Liverpool é uma beleza. Não sabe nada de Lisboa, não sabe onde fica o Porto, então, não conhece sua história, despreza a própria língua. Português é rejeitado amplamente. Ninguém oferece mais nada: disponibiliza. Salvar: salvando o caralho, está guardando.

OP - Isso também acontece com a literatura?
João Ubaldo - Acontece. O sujeito faz análises quilométricas a respeito da obra de (o escritor americano) T.S. Eliot, mas aqui no Brasil só agora se vai republicar a obra de Jorge de Lima, um poeta extraordinário.

OP - Sobre a questão da língua. Muitos gramáticos são espécies de cães-de-guarda da língua portuguesa. A impressão que dá, às vezes, é que estão todos falando errado no meio da rua e só a gramática está certa. Como o sr. avalia a questão?
João Ubaldo - Aqui no Brasil, talvez no mundo - não é justo dizer que é só brasileiro -, é muito comum que a discussão seja não para achar a verdade ou para chegar a uma conclusão, mas para ganhar a discussão. A língua tem que manter uma perpétua tensão. Agora, com as mudanças tecnológicas ocorrendo no dia a dia, isso se torna pior: a língua nunca parou em lugar nenhum do mundo. Do contrário, estaríamos falando latim. Claro que ela vai se alterar, é da natureza da língua. É como um ser vivo. Agora, é necessário que haja uma tensão entre essa mudança e a conservação de determinados valores e padrões. Do contrário se declararia uma anarquia do estado contemporâneo. Como é que você ia ter leis, instruções, normas? A força conservadora é necessária. Se fossem aceitar tudo, seria uma loucura. A língua muda todo dia, a cada hora. Se não segurar, ela dispara. E fica inviável.

OP - O senhor foi um dos autores selecionados para integrar a comitiva que irá à Feira Literária de Frankfurt. Recentemente, o presidente da Fundação Biblioteca Nacional, Renato Lessa, disse que falta iniciativa das editoras que esperam muito do governo. O sr. concorda?
João Ubaldo - Isso eu não sei. Realmente não lido com esses aspectos editoriais. Só faço escrever. Sei quem é meu editor, o Roberto Freitas, que era o dono da Objetiva e é meu amigo, meu chapa. Sei que eu vou a Frankfurt. É perfeitamente possível que eu não vá no avião oficial. Não porque eu sou melhor do que os outros, mas porque eu já tenho meus planos. Eles brigam o tempo todo, essas acusações mútuas.

OP - E, sobre a Feira, o senhor acha que pode ser mesmo importante galgar para o Brasil esse mercado?
João Ubaldo - Têm sido feitas algumas coisas. O Brasil está começando a oferecer - eu não fui objeto de nenhum, nem quero - subsídio para que editoras estrangeiras queiram publicar brasileiros. Aqui está sendo um escândalo. “Como vão dar dinheiro para publicar Chico Buarque, que é milionário?” Essas mesquinharias... Estava lembrando Tom Jobim que dizia que sucesso, no Brasil, é agressão pessoal. Penso que, se um brasileiro ganhar o prêmio Nobel, não só de literatura, qualquer área, haverá uma interpelação judicial à Academia sueca. “Como dar o prêmio a este canalha?”

OP - Quero lhe fazer uma última pergunta: qual o seu maior temor na vida? Se o senhor pudesse elencar, o que seria?
João Ubaldo - Tenho um amigo, Tuiú Sabacu, em Itaparica, que tem minha idade - aliás, rigorosamente, ele é 10 meses mais moço do que eu. É um filósofo como a maioria dos itaparicanos. Ele me disse que o problema não é morrer. Morrer todo mundo sabe que vai morrer. Nasceu tem que morrer. O problema é a catraca, a passagem da catraca (risos). É verdade. Eu tenho medo da catraca. Agora mesmo estou com 72 anos. Morrer é inevitável para todos nós - para mim, mais próximo do que para você (refere-se ao repórter) e do que para a maioria dos presentes. O que me apavora hoje é a catraca. Se fosse uma passagenzinha boa, mas é um dilema filosófico grande, porque Tuiú também acrescenta: “É, podia ser melhor. Podia ser assim: o sujeito ia dormir, não acordava. Passava de uma certa idade já sabia. Vai dormir e não acorda”. Mas aí depois ele também diz assim: “Mas chegavam para o velho de 80 anos e diziam: ‘Vovô, vá dormir’. E o velho: ‘Não, estou com sono hoje, não. Me dê meu cafezinho. Vou ver o jogo’” (gargalha). Na verdade, o mundo é como dizia outro filósofo itaparicano que já morreu: “O mundo é perfeito”. A gente não deve se meter nele, não.


* Copiado das PÁGINAS AZUIS do jornal O Povo.

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