quarta-feira, 17 de julho de 2013

LIVRO PÓSTUMO DE BOLANÕ NO BRASIL (por Alfredo Monte)

Dez anos sem Bolaño e as agruras do seu leitor

 
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“Sobre a velhice, Amalfitano mal pensava.  Às vezes  se via com uma bengala, percorrendo uma alameda luminosa e gargalhando entre dentes. Outras vezes se via encurralado, sem Rosa, as janelas com as cortinas fechadas e a porta trancada com duas cadeiras. Nós chilenos, pensava, não sabemos envelhecer e em geral caímos no ridículo mais espantoso; não obstante, ridículos e tudo, em nossa velhice há algo de valentia, como se ao nos enrugar  e adoecer  recuperássemos a coragem da nossa infância temperada no país dos terremotos e maremotos. (Quanto ao mais, o que Amalfitano sabia dos chilenos eram  apenas suposições, fazia tempo que não os via.)”
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 16 de julho de 2013)

Em 15 de julho de 2003 morria Roberto Bolaño, aos 50 anos, aguardando o transplante de fígado que poderia salvá-lo da insuficiência hepática. Passada uma década, tornou-se figura mítica (uma espécie de reatualização da figura do “escritor maldito”) e referência da cultura contemporânea, um de seus pontos de fuga obrigatórios. Os detetives selvagens (1998) e 2666 (lançado postumamente, em 2004) já gozam do status de obras fundamentais—merecido, a meu ver. Atualmente, o chileno que viveu boa parte da sua curta vida no México e na Espanha exerce fascínio similar ao de Borges ou Garcia Márquez na época do boom hispano-americano.


Não obstante, após 11 traduções no Brasil, constata-se o progressivo desgaste na estatura de Bolaño, muito por conta da sensação de se tratar de um artista meio “samba de uma nota só” e excessivamente focado no próprio ato literário como tema, o que torna cansativa a maioria de seus textos. No meu caso, por exemplo, fiquei maravilhado com os dois romances já citados, mas achei lamentáveis, quando não péssimos,  Estrela Distante (1996), Monsieur Pain (1999) e Noturno do Chile (2000).

O mais recente título, As agruras do verdadeiro tira (Los sinsabores del verdadero policía, em tradução de Eduardo Brandão) parecia de antemão ratificar as piores expectativas: trata-se de um rascunho de romance, ainda não totalmente trabalhado, e montado a partir de vários estágios de manuscritos (apesar das explicações e justificativas sempre muito persuasivas, claro, para a sua publicação póstuma, em 2011).

ROBERTO BOLAÑO Revista Literaria Ñ

E tem mais: como que confirmando o “huis clos” em que operava seu autor, os personagens (com variações) são os mesmos de 2666, e a narrativa-apesar da sua fragmentação— segue a mesma inflexão daquele momento maior em sua produção prolífica e tão irregular: da fixação em carreiras literárias e acadêmicas abre-se para a violência e a criminalidade brutal na fronteira México-EUA. É para lá que se mudam o professor universitário Óscar Amalfitano e sua filha Rosa. Ele se envolveu num escândalo em Barcelona, ao transar com alunos do seu curso, sob a influência da intensa relação com um deles, Padilla, poeta obscuro e radical que contrai o vírus da AIDS.

Nos cafundós mexicanos, Amalfitano inicia outro relacionamento, desta vez com um falsificador de quadros, um dos vários “caminhos falsos” de As agruras do verdadeiro tira (já a partir do título), ou seja, dessa toca não sai coelho. Assim como não sabemos o que acontece com Rosa, a filha, após a informação de seu desaparecimento, e após sabermos que um jovem policial se compraz em espreitá-la (está incumbido de vigiar o pai), e que há moças da sua idade sendo violentadas e assassinadas em série na região.

Pois Bolaño, em cinco partes muito desiguais, abre várias janelas narrativas, algumas delas maravilhosas, capítulos brilhantes, mas não se dá ao trabalho (ou teve tempo) de integrá-las de forma coesa. Para seus admiradores mais ferrenhos e fervorosos, isso já é suficiente: é preciso que o leitor “desconfie” que há uma coesão, pressentindo-a no caos textual. A mim, isso não convence e tenho a impressão de que o farto material acumulado derrotou o autor.

E há as excrescências. Por exemplo, o que tem a fazer em As agruras do verdadeiro tira o escritor fictício que mesmeriza os personagens de 2666, Benno von Archimboldi (aqui como J.M.G. Arcimboldi)? Amalfitano traduzira um de seus romances, e lemos resumos de vários outros, sabe-se lá por quê. Borges, é verdade, não tinha paciência com o gênero e se comprazia muitas vezes em inventar sínteses e resenhas de romances imaginários. É preciso fazer tudo isso novamente? Reinventar a roda?

Com todas essas agruras, ainda assim apreciei bastante o romance-rascunho de Bolaño, como aficionado pelo que de melhor seu talento tem a oferecer. Como é um texto ainda provisório, que não foi burilado até o fim, dá para sonhar com uma obra extraordinária saindo desse casulo; entre as cinco partes, prefiro a terceira  (focada em Rosa e na sua correspondência com Jordi, filho de amigos do pai, em Barcelona, um personagem que é tratado com uma delicadeza de toque surpreendente num autor geralmente pouco sutil[1]) e a quinta (que se abre para os personagens mexicanos, como o policial atraído por Rosa, seus antepassados—uma série de mulheres violentadas entre eles; a amiga professora de Amalfitano e seus envolvimentos amorosos; o episódio do general e seu criado morto…).

Como aquele que escreve a apresentação de As agruras do verdadeiro tira, Juan Antonio Masoliver Ródenas, gosto muito (por motivos divergentes) da seguinte citação: “uma característica essencial da obra de Arcimboldi: se bem que todas as suas histórias, não importando o estilo utilizado, fossem histórias de mistério, estes só se resolviam mediantes fugas, em alguns casos mediante efusões de sangue seguidas de fugas intermináveis, como se os personagens, terminado o livro, saltassem literalmente da última página e continuassem fugindo”.  Acredito que ela explica um pouco o peculiar encanto desse projeto de romance e de sua narrativa desestabilizada, quase incoerente; não justifica, contudo, os vários romances publicados em vida e que padecem do mesmo fenômeno, o qual, no caso deles (e indo contra a ideia de uma “estética do provisório” aventada por Ródenas), transforma-os em experiências frustrantes de leitura.

Mas ainda haverá muito a ser dito sobre Roberto Bolaño, sem dúvida.

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[1] “Rosa Amalfitano e Jordi Carrera começaram a se escrever uma semana depois que os Amalfitano chegaram ao México. O primeiro a escrever foi Jordi. Ao fim de uma semana estranha na qual mal conseguiu pregar os olhos resolveu fazer uma coisa que nunca antes, em seus dezessete anos de vida, tinha feito. Comprou, depois de muita hesitação, o cartão-postal que lhe pareceu mais apropriado, a reprodução de uma charge de Taburini e Liberatore (…) e depois de escrever uma ou duas frases que lhe pareceram idiotas, espero que esteja bem, sentimos sua falta (por que o maldito plural?), pôs no correio e tentou em vão esquecê-lo.
    A resposta de Rosa, escrita à máquina, ocupava três folhas. Dizia mais ou menos que estava ficando adulta em marcha forçada e que a sensação que isso lhe produzia era, no início, maravilhosa e estimulante, mas depois,como sempre, a gente se acostumava. Também falava em Santa Teresa e de como alguns imóveis eram bonitos, construções da época colonial, uma igreja, um mercado com arcadas e a casa-museu do toureiro Celestino Arraya, que visitou mal chegou, como que atraída por um ímã. O tal de Celestino, além de bonitão, era uma glória local morto na flor da idade (…) e no cemitério de Santa Teresa se erguia uma estátua impressionante dele, mas só pensava visitá-lo mais tarde. Parece uma escultora ou uma arquiteta, pensou Jordi com desalento ao ler pela décima vez a carta.
    Levou vinte dias para responder. Desta vez mandou um postal enorme com um desenho de Nazario. Ante a impossibilidade de dizer o que de fato precisava dizer tratou se narrar, sem pé nem cabeça, mas cingindo-se estritamente à verdade, sua última partida de basquete (…) Sobre si mesmo insinuava que tinha jogado mal, distraído, sem vontade de correr, e com isso queria dizer que estava um pouco triste e sentia a falta dela.
   Desta vez a resposta de Rosa se limitava a duas folhas. Escreveu sobre suas aulas de inglês , os passeios que dava  ao acaso pelos bairros de Santa Teresa, a solidão que considerava  um bem precioso e que se dedicava à leitura e ao autoconhecimento, à cozinha mexicana (aqui, de passagem, mencionava o feijão com lingüiça catalão, num tom que pareceu desrespeitoso e injusto a Jordi), algumas das quais já se animava a fazer para seu pai (…)
   Em poucas palavras, escrevia ela no fim da carta, era feliz e a vida não podia ser melhor. Nesse aspecto, confessava, me pareço um pouco com Cândido, e meu mestre Pangloss é este ambiente mexicano fascinante. E meu pai também, mas não muito, na realidade nada, não, meu pai não se parece nem um pouco com Pangloss.
    Jordi leu a carta no metrô. Não tinha a menor ideia de quem eram Cândido e Pangloss, mas pareceu-lhe que sua amiga estava nos portões do Paraíso enquanto ele continuava para sempre no Purgatório.”
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